domingo, 26 de agosto de 2018

Do eco que (in)quieta

O Projeto Clínicas do Testemunho foi instituído pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, com o propósito de trabalhar na e para a reparação psíquica dos afetados, direta e indiretamente, pela ditadura civil-militar brasileira que vigorou de 1964 a 1985. Marilena Deschamps Silveira, Psicanalista, membro efetivo da Sigmund Freud Associação Psicanalítica, coordenou esse projeto no Núcleo SC / Instituto APPOA e neste momento, compartilha um recorte de seu percurso conosco. Teremos ainda, o privilégio de escutar um trabalho seu em nossas Jornadas na mesa "Do outro lado do muro" . 


Terei oportunidade de apresentar algumas reflexões teórico-clínicas acerca dos dispositivos que possibilitaram a escuta psicanalítica no ProjetoClínicas do Testemunho da Comissão da Anistia, do Ministério da Justiça, na minha participação na próxima Jornada da Maiêutica. O Projeto iniciou em 2013 como experiência piloto, com o propósito de proporcionar reparação psíquica aos afetados, direta e indiretamente, pela violência da ditadura civil-militar brasileira que vigorou de 1964 a 1985. Até o final de 2017, o trabalho desenvolvido por nós, psicanalistas da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e Instituto APPOA, se revelou uma importante e significativa intervenção clínico-política, marcando seus efeitos na construção de memórias e recomposição histórica. 
Porém,atítulo de contribuição para o blog, peço licença para uma comunicação bastante informal. Compartilho uma experiência de ordem privada, ocorrida durante o desenvolvimento do Projeto Clínicas do Testemunho, para tecer algumas considerações pertinentes à temática proposta como eixo na Jornada da Maiêutica - “Narcisismo das pequenas diferenças”. A experiência relaciona-se ao que provocou em mim a fala de uma colega, também psicanalista, a partir de uma breve conversa que tivemos. 
A conversa com a colega, que não fazia parte da equipe do citado Projeto, remete a uma espécie de desabafo. Compartilhava com ela minhas angústias – teórico-clínicas e “pessoais” - relativas ao desenvolvimento das intervenções dentro do Projeto e suas peculiaridades. A participação no mesmo nos conduzia para além do setting conhecido do consultório e exigia não perder de vista os fundamentos teóricos e éticos no estabelecimento do fazer clínico. Interrogava-me. Mais que isso, a escuta me fazia atravessar uma fronteira ao me tornar testemunha do absurdo da violência do sujeito humano com outro humano e, por consequência, da violência de Estado ocorrida durante o período ditatorial do nosso país. Enfim, uma conversa em que dizia do “trabalho psíquico” que me dava estar dentro do Projeto. A colega, como ouvinte, pondera sobre algumas questões e, talvez como desfecho do atravessamento das minhas pontuações nela própria, me diz “sabe, na verdade, prefiro mesmo é ficar quieta dentro do consultório”. De imediato, aquela fala faz tremer minha carne e um eco me ocupa: “não teria sido mais fácil ter ficado quieta dentro do consultório?”


Censorship, de Eric Drooker, Nova York.

Do narcisismo das pequenas diferenças
Freud nos apresenta o termo “narcisismo das pequenas diferenças”. A antítese aí presente surpreende. Pois, enquanto o narcisismo assinala o Um, o mesmo, o espelho, a quietude e o tempo que é, as diferenças nos remetem ao espaço da alteridade, do nós, da linguagem, da temporalidade, do tempo num movimento de passado, presente e futuro. Assim, habituados a contemplar esta divisão, o termo “narcisismo das pequenas diferenças” provoca uma sensação de estranhamento, possivelmente por borrar, ou esfumaçar, a fronteira entre narcisismo e diferença. As fronteiras permeáveis permitem a entrada do estrangeiro. 
Portanto, já no encontro com opróprio termo nos deparamos com a perspectiva de que o diferente, compreendido como estrangeiro e estranho, é capaz de promover uma ameaça de desarticulação. No texto de 1919, Freud nos faz compreender que o estranho é também familiar, e nos assombra por nos remeter à nossa anterioridade arcaica. Ou seja, nos reconduz a presença do outro dentro de nós. Um outro que foi fonte da nossa constituição subjetiva, e que através dessa experiência foi possível a saída do caos inicial. Porém, esse mesmo outro provocou nosso primeiro movimento hostil em relação à diferença ao nos implicar numa outra realidade que não fosse narcísica. Ou seja, a construção da alteridade se faz em movimentos pulsionais regulados através desta relação que exige renúncia para que a subjetividade se efetive. 
Por isso mesmo, Freud aponta com o termo que o narcisismo evidencia seus efeitos no enfrentamento das diferenças presentes nos laços sociais. Somos, assim, relembrados que o narcisismo que esteve nos nossos primórdios como fundamento constitutivo do “ser” não é fácil de ser abandonado. Ressurge como guardião protetor do eu sempre que o mesmo se sentir ameaçado na ruptura da sua integridade. Apesar de divisão, e não síntese, o eu se pretende forma. Apesar de precário, busca completude. 
Nesse sentido, em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud recorre à delicada parábola de Schopenhauer, sobre a sociedade de porcos espinhos, para assinalar que a aproximação entre as pessoas não é vivida com tranquilidade, suscitando operações que encobrem a hostilidade. Ou seja, a intimidade é espinhosa e movimenta espetadas.  Os espinhos, pensamos, dizem respeito às diferenças apresentadas pelo outro, enquanto o incremento das espetadas aponta a dificuldade de que sejam aceitas formando muros defensivos de classificação. Desta forma, o eu, ou o grupo ao qual o eu pertence, é sempre mais nobre que o outro. Retorno de “Sua majestade, o bebê”, buscamos da reflexão de Freud em “Introdução ao narcisismo” (1914). Isto é, narciso acha feio o que não é espelho, mas narciso também, primordialmente, foi sustentação da vida. 
Assim, ao tentar se desfazer da presença qualificada do outro, não reconhece a própria agressividade, mas é através do movimento agressivo que o eu luta pela afirmação da vida contra a morte, que assombra através do despedaçamento. A presença do outro semelhante sempre nos trouxe e nos apresenta um certo excesso quantitativo a ser simbolizado – corpo perfurado pelo espinho - mas quem sabe, a angústia é tanto maior e se impõe, quanto mais a realidade invade o eu com o demais – além do princípio do prazer, acompanhando Freud de 1920.  Aangústia faz abrir as portas para as armas de narciso.
Freud nos apresenta um psiquismo que trabalha sempre a serviço de dominar as excitações, internas ou externas ao organismo, de forma a alcançar satisfação e evitar o desprazer e a angústia. Mesmo que o eu não seja senhor na sua própria casa, anunciou Freud, é esta instânciaque faz contato mais imediato com a realidade e procura desempenhar a função complexa de regulação deste encontro. Trata-se de uma função complexa, que pode colocar em funcionamento as outras instânciasnuma variada produção de estratégias para resolução do mal-estar.
Assim, damos ênfase ao espinho que perfura o corpo para assinalar a ideia da dor como excesso, como desprazer, mas também para levar em conta que a espetada fura e nos atinge com o vazio de representação. Independente das condições do eu para mediar e dar conta do desprazer, faz diferença a singularidade da efetiva vivênciade excessos. Ou seja, faz diferença para um processo tradutivo a intensidade da quantidade experimentada no acontecimento. Assim, é a partir desta perspectiva que retorno à conversa citada com minha colega e ao eco que se fez dentro de mim: “Não teria sido melhor ter ficado quieta dentro do consultório?”
Recuo narcísico?
Como psicanalistas, apostamos numa escuta que dê lugar à construção da subjetividade. Sabemos, ao mesmo tempo, que toda intervenção que promova processo de subjetivação se faz eticamente, atendendo ao reconhecimento da alteridade. Desta forma, contribuímos no engendramento de laços sociais. Freud assinalou que não é possível diferenciar psicologia individual, considerando que o sujeito desde sempre esteve dependente dos laços sociais para sua constituição, e raramente poderáprescindir deles. Assim,“a psicologia individual é simultaneamente psicologia social, no sentido mais amplo, porém inteiramente legítimo” (1921). 
E neste sentido, a escuta psicanalítica clínica do consultório/privada não está reduzida a quatro paredes. No entanto, parece-nos que a psicanálise dirigida ao contexto social, às conflitivas da nossa sociedade na contemporaneidade, ainda é acanhada. Poderíamos dizer que o contexto social ainda é o estrangeiro que nos perturba na nossa própria casa? Teríamos bastante para discutir sobre.
No momento, porém, me limito a considerar o protagonismo da psicanálise com o Projeto Clínicas do Testemunho a partir da sua dimensão coletiva, social e política.  É preciso apontar que se trata de um estrangeiro bastante específico: aquilo que é da ordem do horror e do indizível.  Estamos nos referindo ao ódio advindo da intolerância à diferença, na contramão do processo civilizatório. Estamos no campo da barbárie e dos efeitos devastadores da violência para o sujeito e para o coletivo.
O eco, então, convidava-me ao recuo – não teria sido mais fácil ter ficado quieta dentro do consultório? Sim, teria sido mais fácil, pois não se escapa ileso quando se chega tão perto dos espinhos que perfuram o psiquismo com o excesso do real. Reverberações do traumático. O grito de dor do outro evoca nossa própria condição de desamparo, suspendendo a fronteira entre um e outro. Portanto, ficando quieta haveria silencio, não haveria a repercussão barulhenta dentro demim da escuta da dor de quem tenta narrar o inarrável. Ficar dentro do consultório eleva a barreira de proteção, levanta o muro - uma barreira antiestímulo. Conforto narcísico?
 Através do conforto narcísico, não percorremos o caminho do nós,do saber dos efeitos da violência de Estado sobre o sujeito, mas também sobre todo um corpo social. Neste sentido, pode a psicanálise ficar afastada da sociedade em que está inserida? Podemos silenciar?
Ou devemos nos (in)quietar

Com efeito, no que tange ao registro social, podemos apontar, amparados no discurso psicanalítico, que os atos de violência caminham na contramão de qualquer perspectiva de construção subjetiva. A ética da psicanálise tem vigor para disseminar o reconhecimento ao sujeito na sua diferença e singularidade. Nossa possibilidade de intervenção aponta para a defesa da construção de sentidos a partir da capacidade de ter o outro como semelhante na sua diferença, num compromisso com a criação de simbolizações possíveis para que se abra novas expectativas nos laços sociais. Sem o fiador psíquico, só resta ao sujeito, e ao social, na busca de alívio da tensão pulsional, passar ao ato no expoente máximo da violência: matar o outro, ou a si próprio. E a sociedade, como um todo, paga um preço por isso. 



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