quarta-feira, 2 de maio de 2018

A arte e as pequenas diferenças


Gabriel Bueno, Psicanalista, Professor de Psicologia da Faculdade CESUSC, Mestre em Psicologia Social e com experiência no campo das artes plásticas, cinema e arte urbana, discute o tema pensado num paralelo com a arte. 


Na imagem: o autor e sua obra - graffiti de Gabriel Bueno que assina sua arte como GBA.
Fotografia de Ana Carolina Von Hertwig



• NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS

narcisismo não se trata de uma doença da alma a fim de ser curada. Não é um sintoma ou patologia. Tal conceito é uma das condições que mantém a nossa existência, procurando protegê-la e armá-la contra fatores externos que ameaçam o eu: os outros e o mundo.

No entanto, a retirada do Eu para um gozo narcísico, abdicando dos investimentos nos objetos que lhe são externos, pode levar o sujeito às condições de delírio e de distanciamento de uma realidade possível de ser compartilhadasintomas estes característicos das neuroses narcísicas (Freud,1917). Se então o narcisismo se estabelece como necessidade de autopreservação e consolidação do Eu neurótico (Freud, 1914), ou se estrutura na ordem das psicoses, esse destino se dá na dosagem de libido investida no próprio Eu e no outro

Sabemos que as relações amorosas podem se configurar como um bom encontro, carregados de estima, carinho e bem querer; como também podem pender para a obsessão, para a dependência e para uma idealização delirante referente ao objeto escolhido como o suposto salvador da nossa condição de desamparo. Não seria diferente em relação a esse amor por si próprio.    

O narcisismo, mais uma faca de dois gumes da psicologia. Famoso tema dos livros de auto-ajuda: ama-te a ti mesmo! frequente auto-diagnóstico do aqueles que sofrem: baixa auto-estima. No entanto, a teoria psicanalítica evidencia a contradição desses saberes da cultura. O sujeito que se trancafia nas suas inibições, que sucumbe aos seus sintomas, que padece cotidianamente da angústia, por vezes pode ser interpretado como aquele que, justamente, não investe no outro, num objeto externo, mas preferivelmente em si mesmo. É sempre o foco de sua atenção, de sua preocupação, de seu próprio interesse. Consequentemente, projeta que o mundo lhe dá a mesma importância, o mesmo lugar de celebridade. Cola-se àquilo que representa o objeto de gozo, lugar esse tão angustiante ao sujeito, claustro de satisfação e de gozo do Outro. 

Há, todavia, um narcisismo mais “discreto”, cotidiano, comumente imperceptível nas nossas relações.  Aquele que Freud chamou de ‘narcisismo das pequenas diferenças’ (Freud, 1921, 1930), expressões estas que se apresentam nos nossos apegos a ideias, crenças, ideologias. O sujeito que se crê certo e irredutível nas suas convicções e que aponta no outro falhas intelectuais ou de caráter por esse outro não compactuar com as mesmas ilusões. Difícil aquele que escapa desses pensamentocorriqueiros em relação ao outro: “olha como ele se veste”, “que comportamento reprovável”, “que vergonha alheia”, “como pode ser tão estúpido”... Sim, nós todos cedemos à satisfação de crer que o nosso Eu é que sabe,que tem a resposta, que detém a verdade. 

Porém, enquanto permanece no plano da mesquinharia narcísica, nada de mais. No entanto, dada nossa inclinação ao ódio, à discriminação à agressão, é muitas vezes nas pequenas diferenças que reside o estopim para as práticas de violência e intolerância cotidiana (Freud, 1930)Nos tempos atuais parece que os preceitos dos livros de auto-ajuda triunfaramonde todos e qualquer um são oniscientes onipotentes, não deixando espaço para a dúvida e para a castração. Consequentemente, não permitindo espaço para o outro em benefício do Eu. 


• A ARTE E AS PEQUENAS DIFERENÇAS

Se a palavra funciona como um feitiço — que tem propriedade de atravessar o espaço, invisivelmente, chegar a um outro e provocar-lhe afecções no corpo e na alma — a arte se estrutura sob mesma característica, arte como magia (Freud, 1913)

Como feitiços, palavra e arte podem provocar sensações prazerosas, entusiastas, apaixonantes, aflorar em seus alvos os mais agradáveis afetosPodem também, entretanto, suscitar sentimentos desagradáveis, reviver memórias perturbadoras, evocar elementos sensíveis com os quais não se quer entrar em contato, que se tranca a sete chavesComo balas perdidas, muitas vezes os alvos não são premeditados os efeitos desses feitiços não podem ser previamente determinados.

Assim, a arte pode ser bem-vinda e representar a redenção de inúmeros infortúnios da humanidade, ou soar bastante desagradável se não coadunar com as nossas afinidades estéticas. Nossa recepção da obra de arte, como a avaliamos e como a sentimos, estaria mediada pelo Eu. Esse Eu imaginário estabelece suas identificações com elementos estéticos e a eles se alia com o propósito de delimitar o seu lugar no mundo, levantando suas bandeiras também no campo da arteMais um terreno fértil para as expressões das pequenas diferenças, onde narcisicamente se julga a partir de afinidades estéticas. 

É também contemporâneo — paralelo às intolerâncias políticas, religiosas e étnicas — a intolerância em relação às manifestações artísticas. Semelhante ao apedrejamento do nu de Michelangelo no século XVI (Lins, 2011), ou as exposições da arte degenerada no regime nazista, hoje, de forma sintomática, pois repetitiva, a arte é alvo dos ataques às pequenas diferençasdevido à impossibilidade de suportar pequenas desaprovações do Eu narcísico





REFERÊNCIAS:

(Freud, 1913) Totem e Tabu.
(Freud, 1914) Sobre o narcisismo.
(Freud,1917) Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (Parte III) – A Teoria da Libido e o Narcisismo.
(Freud, 1921) Psicologia de Grupo e Análise do Ego.
(Freud, 1930) Mal-estar na civilização.
(Lins, 2011) Nietzsche ou o elogio da beleza plástica .





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