sábado, 7 de julho de 2018

Da crueldade desde sempre


Ana Augusta Brito Jaques, Psicanalista, Doutora em Clínica e Pesquisa em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi militar de carreira, primeira mulher enviada em uma missão de paz ao Timor Leste, em 2003. Inquietada diante da crueldade, colocou-se em produção diante deste tema. No texto que segue, compartilha conosco um pouco de seu trabalho que também será apresentado em nossas jornadas.


Da crueldade desde sempre



O que dizer da crueldade humana? Quais análises demandam a crueldade na atualidade? Por que a crueldade humana não é estancada? O que vem a ser a crueldade, conceito obscuro e enigmático, essa ausência de compadecimento, o sofrer por sofrer, o fazer sofrer, o jogo do gozo do sofrimento?
Sigmund Freud, na Traumdeutung(1900), ao proceder a análise do ‘Sonho do besouro de maio’ usa a palavra crueldade para designar algo inexorável na condição humana. No século passado, antes mesmo da elaboração do primeiro dualismo pulsional, o criador da psicanálise faz referência à crueldade praticada por crianças e por adultos, na vida desperta e na vida onírica, para afirmar que aquilo que é estrutural na perversão se estende a todos os seres humanos, variando apenas em intensidade nas suas manifestações. A crueldade é natural na infância, tendo em vista que a trava que faz a pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro tem um desenvolvimento posterior. “Um estado da alma”, afirma Jacques Derrida (2000) cem anos depois, em conferência proferida durante os Estados Gerais da Psicanálise, em Paris. Na condição de chegante, o filósofo franco-argelino sustenta que, ainda que a crueldade sanguinária seja estancada, tomando como referência Freud ou Nietzsche, restará uma crueldade psíquica pronta a inventar novos recursos e caminhos.
Ao seguir o rastro deixado por Freud percebemos a vinculação que o autor faz da crueldade com o sexual, notadamente a partir dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), onde se refere à pulsão de crueldade em sua forma ativa e passiva. O tema da crueldade será trabalhado por Freud em muitos momentos de sua obra, inclusive atravessa subliminarmente a temática de textos anteriores a 1900. Em 1913, em Totem e Tabu, ao tratar do assassinato do pai, portanto da cena psicanalítica que estrutura o coletivo, onde estão implicados a origem da cultura, e o direito e a lei como originários das transformações da crueldade e da violência. Em 1915, com a publicação de Reflexões para os tempos de guerra e morte onde aborda o rompimento dos laços sociais, a subversão da ética e da moral, do extermínio do outro – tudo sob a fiança do Estado, e assim, Freud nos dá pistas das suas formulações teóricas vindouras, ou seja, as relativas à pulsão de morte. Em 1919, no texto Introdução à psicanálise e às neuroses de guerra, aborda a neurotização do sujeito na guerra e critica a ciência por usar saberes e procedimentos em prol da crueldade. Para os sujeitos militares daquela época a condição era sofrer com os horrores da guerra, inclusive aqueles por eles cometidos, ou sofrer com o terror dos choques elétricos como forma de tratamento médico. Perspicaz, Freud destaca na Psicologia das Massas e a análise do eu (1921) o problema do entendimento do narcisismo das pequenas diferenças, situado numa região de fronteira, portanto de tensão, ou seja, a tensão que está na base do nós e do outro. Assim se configura o palco da diferença, donde provém mal-estar: a repulsa do sujeito ao que lhe é mais íntimo é tomado individualmente, ou pela massa identificada, como objeto externo, a quem todo o ódio é endereçado: o estrangeiro.
Se a crueldade é uma categoria constitutiva do sujeito, como argumenta Freud em 1927, em O futuro de uma ilusão, cabe aos que se designam psicanalistas a atenção (flutuante) necessária para ouvir e observar as tendências humanas destrutivas, das mais simples às mais impensáveis de serem praticadas. Sabemos que a não satisfação de uma pulsão cobra um preço alto, mas igualmente sabemos que a satisfação irrestrita dessas mesmas pulsões reencarna a horda – algo mais difícil de suportar.
Depois da escrita de Além do princípio de prazer(1920) – texto onde apresenta o segundo dualismo pulsional -, a escrita freudiana reflete a cultura de seu tempo, um tempo de guerra. Mal-estar na civilização ([1929]1930) se apoia nas teses do princípio do ódio originário e da satisfação da pulsão num campo além - Campo onde Jacques Lacan circunscreve o campo do gozo.
Se a crueldade é uma das faces da pulsão de morte nunca é demais lembrar a ubiquidade da agressividade e da destrutividade não erótica. E se a história da humanidade é a história de suas guerras, é preciso pensar na lógica das pulsões de crueldade, das pulsões de destruição, indissociáveis da pulsão de morte. “Quando os seres humanos são incitados à guerra, podem ter toda uma gama de motivos para se deixarem levar – uns nobres, outros vis, alguns francamente declarados, outros jamais mencionados. [...] Entre eles está certamente o desejo de agressão e de destruição: as incontáveis crueldades que encontramos na história e em nossa vida atestam a sua existência e a sua força”, afirma Freud (1933) em correspondência com Einstein.
Trago um pouco dessa pesquisa e de minha experiência clínica com militares brasileiros no front, e egressos do front, escolhendo pensar como Freud e Derrida, os quais defendem que para tais questões somente a psicanálise tem algo a dizer.

REFERÊNCIAS
COUTINHO JORGE, M. A."A pulsão de morte”. In:Estudos de psicanálise, n.26, Belo Horizonte: Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, 2003, p.23-40.
DERRIDA, J. Estados-da-alma da psicanálise – o impossível para além da soberana crueldade. São Paulo: Ed. Escuta, 2001.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
_________. (1900). A interpretação dos sonhos.vol. IV. 
_________. (1920). Além do princípio do prazer.vol. XVIII.
_________. (1915) As pulsões e suas vicissitudes. vol. XIV.
_________. (1950[1892-1899]).Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. vol. I.
_________. (1919). Introdução a a psicanálise e as neuroses de guerra.vol. XVII.
_________. (1927). O futuro de uma ilusão.vol. XXI.
_________. (1930 [1929]). O mal-estar da civilização.vol. XXI.
_________. (1933 [1932]). Por que a guerra?.  vol. XXII.
_________. (1921). Psicologia de grupo e a análise do eu.vol. XVIII.
_________. (1915) Reflexões sobre os tempos de guerra e morte.vol. XIV.
_________. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. vol. XIV.
_________. (1913) Totem e tabu.vol. XIII. 
_________. (1905). Três ensaios sobre a sexualidade. vol. VII.
FUKS, B. Freud e a cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
_________. “A cor da carne”. In: RUDGE, A. M. (org). Traumas. São Paulo: Ed. Escuta, 2006.
LACAN, J. (1953). O seminário: livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.
_________. (1964). O seminário: livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985.
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

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