quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Psicanálise & Arte




Inspirados no convite para que se possa criar algo a partir das diferenças presentes nas relações e na proposta de se olhar para além dos muros que nos separam, o trabalho que tem sido feito pela “Psicanálise & Arte” compôs com as Jornadas da Maiêutica 2018, trazendo para o seu encerramento a Atividade Aberta: Performance - “O Narcisismo das Pequenas Diferenças”. 

O Narcisismo é um conceito criado por Freud a partir do mito grego Narciso, o qual se encanta pela própria imagem refletida num lago, vindo a ser tragado por ela e devorado pelas águas - que trata da constituição do eu. 

A partir do conceito de "Narcisismo" surge em Freud a noção de "Narcisismo das Pequenas Diferenças". Como bem distingue a psicanalista Betty B. Fuks , no texto "Segregação constitutiva do outro em tempos de totalitarismo":

"(...) Enquanto o narcisismo instaura um "eu" distinto de um "outro", o narcisismo das pequenas diferenças instala o "nós" diferente dos "outros". Dito de outro modo, o narcisismo das pequenas diferenças apóia-se sob a lógica da segregação, a mesma que sustenta o narcisismo propriamente dito, para fortalecer a identificação especular no interior dos grupos e distinguir aquilo que não é espelho, o não-idêntico que atrai e repele. Por isso, a intolerância aparece mais intensamente contra as pequenas diferenças do outro do que dirigidas às diferenças fundamentais. Não se trata de uma diferença qualquer, mas aquela capaz de provocar o afeto deangústia (...)".

Com isso em mente, elegemos uma expressão artística muito representativa da arte contemporânea - que a partir das décadas de 60/70 surgiu questionando os "muros" sustentados pelos enquadramentos sociais e artísticos do modernismo, promovendo aberturas para experiências culturais das mais distintas. A arte contemporânea tem como orientação predominante dirigir a criação artística às coisas do mundo, à natureza e à realidade humana; desafiando as classificações habituais e colocando em questão a própria definição de arte.

Compôs-se daí uma performance artística, combinando elementos do teatro, da poesia, das artes visuais e da música e que ganhou vida a partir de um roteiro de cinco breves Atos que colocam em cena um enredo dramatizado, poetizado, visualizado e cantado sobre "Narcisismo" e "O Narcisismo das Pequenas Diferenças".

Dá direção, contornos e tom à performance, uma trilha musical que anuncia, ato por ato, o que entrará em cena. Os três primeiros atos partem da potência consagrada na composição erudita Carmina Burana - obra do alemão Carl Orff na qual são reconhecidos elementos que reportam a uma simplicidade de compreensão - que em muito agradava aos ideólogos nazistas - seguindo pela provocativa obra de Stockhausen, “Gesang Der Jünglinge” -  composição criada,  predominantemente, a partir de alterações da voz de um menino soprano sintetizada aos sons eletrônicos, tendo a seleção dos versos privilegiado as vogais e consoantes que ressaltam as permutações de sonoridades puras e ruídos gerados eletronicamente, mantendo o máximo de controle sobre timbres vocais. 

A imponência óbvia de Carmina Burana e a marca alienígena de Stockhausen abrem espaço para Astor Piazzollaem sua composição “Close Your Eyes and Count To Ten”. Piazzolla abre a fenda da multiculturalidade, trabalhando com características do tango, do jazz e da música erudita: uma amálgama de vertentes estéticas que constitui um autêntico paradigma, chamado por ele próprio de Novo Tango.

Carmina Burana nos remete ao Narcisismo presente na constituição psíquica de todo sujeito falante e que pode assumir proporções que levem até mesmo à naturalização do “apedrejamento” do outro. Enquanto Stockhausen nos reporta à complexidade inerente a essa constituição, colocando em cena os muitos que habitam esse eu. E Piazzolla nos inspira a partir de sua marca da multiculturalidade, ao desafio de aproximação e convivência, com as nem sempre tão pequenas diferenças.

A passagem para os dois atos finais se dá através de composições de dois artistas brasileiros, Caetano Veloso e Lenine. Caetano, através de sua composição “Sampa”, canta em verso e prosa o estranhamento, o questionamento, o desconforto experimentado por um estrangeirofrente às diferenças culturais, sociais, econômicas que a metrópole paulistana provoca àquele "novo baiano" que desembarca num universo radicalmente distinto do seu, mas que pouco a pouco passa a o incorporar. Lenine, transforma em música o slogan do Instituto MetaSocial - o qual desenvolve ações junto à mídia para promover a inclusão social - "Ser Diferente é Normal"; nos convidando a revisitar o óbvio que aparecia de modo invertido na abertura da performance.

 A performance convida e provoca o público ao se despedir do espetáculo a se interrogar: mas afinal, o que "O Narcisismo das Pequenas Diferenças"  tem a ver com isso tudo?

Bom espetáculo!

Ficha Técnica:
Direção e Roteiro: Cléia Regina Canatto
Artistas: Elianne Carpes; Marcoliva e Maycon de Souza
Produção: Amanda Rabusky e Bruna da Silva
Cenário: Ana Luiza Kaminski

Músicas:
-   Carmina Burana - Carl Orff
-   Gesang Der Jünglinge - Karlheisen Stockhausen
-   Close Your Eyes And Listen- Astor Piazzolla
-   Sampa- Caetano Veloso
-   Ser Diferente é Normal- Lenine

Poemas:
-   Linaldo Guedes, Os zumbis também escutam blues e outros poemas. Textoarte Editora,  1998.
-  Ferreira Gullar, Barulhos (1980 1987). Rio de Janeiro, José Olympio, 1987.
-  Paulo Leminski, Caprichos e Relaxos. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983.

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