segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Tempo de concluir...


Antes que o ano finde, uma pausa para dividir a forma como nosso trabalho com o Tema Institucional foi encerrado neste dia 29 de setembro. 

Registramos um pouco de como partilhamos nossos últimos momentos juntos nas Jornadas, mas sobretudo, registramos que esse trabalho de escuta, abertura e interlocuções segue. Então, estão todos convidados a seguirem conosco!


Das Interlocuções possíveis e abertas


Nossa proposta de interlocução começou entre as quatro paredes da Instituição, mas de lá seguiu: batemos nas portas para sermos recebidos, pedimos licença para sermos escutados e sobretudo, pedimos que nos deixassem escutar (trabalhos, propostas, percursos...) 

Muito disso já ficou compartilhado neste blog construído para as jornadas: passeamos pela história com Nicolina de Petta, saboreamos arte, utopias e possibilidades com Edson Luiz de Sousa, Ana Luisa Kaminski, Gabriel Bueno... assistimos à fala de colegas como Claudemir Flores... e, desse recorte que faço em agradecimento à generosidade dos colegas que se propuseram a trabalhar conosco mesmo de longe, divido com vocês o tanto que quisemos ouvir – desejo ratificado na apresentação dos trabalhos que seguiram daqui até as Jornadas Abertas. 

E é desse desejo de trabalho que me propus a falar ao encerrar os trabalhos das Jornadas em 29 de setembro. Colette Soler, quando pergunta “o que faz laço?” marca o quanto é fascinante um encontro: em que se propõe um tempo e  um lugar e tantos corpos transportam-se para aí nesse dia, imantados por algo. 

Ouso elencar alguns dos nossos “imãs”, alguns pontos que acredito terem nos capturado e começo marcando algo nada novo: o compromisso de seguirmos atentos à escuta da nossa época como fundamental ao exercício da psicanálise. Estivemos reunidos, primeiro, atentos a isso. Mas também acredito em nossa inquietação do nosso lugar de analistas e na proposta de escutar mais. Anuncio o que já foi marcado diversas vezes e de formas diversas nessas jornadas: nossa ética em seguirmos nos questionando, nos escutando e escutando nosso entorno. E por último (não que sejam só esses nossos enlaces), marco nossa fundamental castração. Porque a partir do lugar de não saber, nos colocamos a nos questionar e produzir. Em nome da psicanálise e do desejo do analista, trabalhamos até aqui. 

O desejo do analista - isso que acredito ser um dos pontos de chegada de uma análise, é também o ponto de partida para que se fomente interlocuções como esta que fizemos juntos, para que se compartilhe trabalhos e se abra questões. 

Também é o desejo do analista que pode permitir que se presentifique a psicanálise no mundo  e, esta proposta de Lacan foi também a que ouvimos por tantas vezes nessas jornadas e que já foi anunciada por Freud lá atrás em registros de suas aspirações como em  “Linhas de progresso na terapia psicanalítica”. 

Tivemos a oportunidade de ouvir colegas em seus trabalhos e escutas singulares, e fomos convidados por cada um, de uma forma particular, a não silenciar. Ouvimos de Betty Fuks sobre o quanto pode ser trágica a consequência do silêncio; e, outros colegas, ao falarem, elaboraram e nos fizeram elaborar tragédias da vida, de nossos tempos.

Estas jornadas foram um exercício de não silenciar. 

E a partir desse exercício de escutar e falar, e depois de tanto nos debruçarmos sobre as relações de ódio e hostilidade, tão importantes e presentificadas em nossos tempos, convido à questão do amor: não como oposição ao ódio, mas aquele que permite o início da análise e do qual se abre mão para sustentar o lugar de analista. 

Eis o que se faz então ao sustentar nossa práxis, e também nosso trabalho na Instituição e nosso olhar para além dos muros. 

Ao enunciar que a autorização do analista se dá por si mesmo e por alguns outros, Lacan anunciou o trabalho com os pares, mas junto com isso também se instalou o discurso velado da desautorização. E sustentar o trabalho psicanalítico sem se esconder entre muros, é desafiador por muitas vias. 

Daí, mais uma vez, a importância de trabalhos como esse sobre o qual nos debruçamos e enlaçamos. E o lugar tão importante de um discurso que não se repete esterilmente em torno da questão “isto é psicanálise ou isto não é psicanálise”, mas se articula de modo produtivo sobre os desafios de se seguir repensando o lugar de analista.  

Pedro Heliodoro nos provocou a estarmos em paz com o próprio “daimon”, abdicando da demonização do outro em suas pequenas diferenças como um possível fim de análise.

E se o percurso da análise caminha para a invenção do amor para além do narcisismo, o amor que não é ao próximo, mas que se fundamenta no princípio da diferença, eis que devemos falar sobre ele. 

Nossas jornadas nos oportunizaram o testemunho de trabalhos singulares, a escuta do plural, o compromisso ético contra a hegemonia, o estranhamento, a inquietação ... e dos muros erguidos a serviço da segregação e estigmatização, propôs produção. Se até então, diante do diferente, marcavam-se  distâncias, construímos a questão do muro. Em nossas Jornadas, ele não! O muro lá, em arte foi desfeito. 

Esse percurso foi possível a partir da sustentação do desejo de muitos. Nomeio primeiramente Jeanine Fialho, que enquanto Presidenta da Instituição pagou os preços da abertura, e com sua marca de trabalho muito objetiva, não titubeou em retornar a cada vez com o seu habitual “seguimos”. O cuidadoso percurso teórico feito por Tania Mascarello que coordenou o Tema Institucional e não deixou que nos desviássemos do que Freud propôs. Cléia Canatto que presentifica o valor da escuta nos cortes, na ética, na estética e no afeto com que faz seus laços de trabalho. 

Agradeço aos colegas da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica, o lugar de coordenar estas Jornadas, que se inscrevem pra mim como um ato e me brindam com a escuta sobre este tema que me captura. 

Agradeço às colegas da Comissão Organizadora: Luana, Bruna e Amanda. E aos colegas que neste percurso tornaram-se nossa Comissão de apoio: Roberta, Márcio, Antonio, Deise, Eduardo, Lucas, Terezinha, Alessandra e Aline. Nos bastidores, e a partir de uma transferência que não é nova em minha caminhada, contei com a presença implicada e de singular parceria de Marcela de Andrade Gomes, que me proporcionou escutas diversas e a quem nesse momento formalmente agradeço. 

A presença de cada colega que trabalhou e dividiu conosco seu percurso teve um lugar especial para que fosse possível ouvir mais, produzir além. Agradeço a cada um, e, especialmente, aos conferencistas que inscreveram o novo, a abertura e os laços: Betty Fuks, Miriam Debieux e Oscar Miguelez. E ainda, agradeço aos nossos convidados que não fazem parte de nossa Instituição, mas vieram participar de nossas mesas com apresentações de trabalho: Ana Augusta Brito, Marilena Deschamps e Pedro Heliodoro Tavares.

Nesse tempo de trabalho, muitas vezes falamos da inscrição no corpo, no Real, na carne. E foi experimentando um pouco disso que nos atravessa, que prestigiamos o trabalho “O narcisismo das pequenas diferenças” do dispositivo Psicanálise e Arte, como atividade que encerrou nosso evento, mas que poderia ser considerado em si, um evento à parte, tamanho o alcance e as marcas que produziu. 

E é com o registro dessa performance, que encerramos as postagens do Blog Jornadas 2018:
Joana Felício, pedagoga, pós graduada em Surf e SurfBoard, Atriz e com percurso de teatro, cinema, tv local e nacional; idealizadora e responsável pelo Vlog Energia Vital, foi quem fez a filmagem e edição desse espetáculo. 
O Vlog é uma ferramenta de divulgação de entretenimentos de forma geral, através dele, Joana busca mostrar um pouco do que acontece na Ilha da Magia, no Brasil e no mundo. Cultura, arte, esporte, beleza, saúde... abordagens com um olhar dinâmico e descontraído.  
Com esse dinamismo e interesse pelo que é belo, ela nos ofereceu seu olhar e sua disponibilidade que resultaram nesse fragmento que podemos dividir com vocês.  
Agradecidos pelo trabalho especial com que nos presenteou, convidamos todos a acessarem e se tornarem apreciadores dessa rede que Joana sustenta. #vlogenergiavital - acesse no Instagram, Youtube e Facebook. 






Por Tahiana Brittes
Coordenadora das Jornadas 2018



sexta-feira, 28 de setembro de 2018

É hoje!




Experimentamos esse momento com o sabor de quem organiza uma festa e vai recebendo aos poucos a confirmação dos convidados. Esse percurso nos colocou em produção e poder dividir os resultados e construir as próximas etapas disso ao lado de tanta gente, nos anima e confirma o trabalho feito em nome da psicanálise e do desejo do analista. 
Esperamos por vocês! Até logo!





sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Arendt com Freud: o mal em questão

Oscar Miguelez, Psicanalista, Professor Doutor no Instituto Sapientiae de São Paulo, escreveu o livro "NARCISISMOS" e nos brindará com uma conferência com esse mesmo título em nossas jornadas. Nesse momento, divide conosco um capítulo de seu livro, publicado em 2007, pela Editora Escuta. 


Recorte da capa de "Narcisismos
Arendt com Freud: o mal em questão [1]

 Durante a leitura, do livro de Hannah Arendt Eichmann em Jerusalém, [2]  sempre atual, uma questão foi se sedimentando, crescendo e tomando forma. Para formulá-la são necessários alguns preâmbulos. Entre as múltiplas afirmações de Arendt, algumas nos surpreendem especialmente.
Ela afirma que o mal ocasionado aos judeus durante a Segunda Guerra não pode ser entendido como uma continuação do anti-semitismo secular reinante na Europa. Algo novo e diferente do que ocorria até então levou ao extermínio em massa. Também ficamos chocados com a idéia, por ela formulada, de que tamanha destruição não poderia ter-se operado sem certa colaboração das vítimas. Por último – e essa foi uma das hipóteses mais divulgadas de sua obra – , a motivação dos algozes não era baseada em algum tipo especial de maldade ou perversidade; tratava-se de pessoas comuns, simplórias, sem nenhum traço relevante que pudesse justificar tamanha capacidade de destruição. A expressão “banalidade do mal” surgiu como um modo de simbolizar a constatação posta em evidencia durante o julgamento de Eichmann. 
Não foi objetivo da autora criar uma teoria ou doutrina a respeito da natureza do mal. Sua intenção foi, sobretudo, a de compreender os fatos: a personalidade de Eichmann estava longe de configurar um monstro, um ser excepcional, diferente de todos nós.
As intenções de um autor nem sempre são seguidas por aqueles que o lêem. Ficou no ar, fisgando, a questão da natureza do mal. Restou a pergunta a respeito do que era o mal, do que se queria dizer com essa palavra tão carregada de conotações religiosas. Mais ainda, também sobrou a interrogação sobre a contribuição que a psicanálise poderia trazer para um assunto que ao mesmo tempo parecia tão próximo e tão distante dela, pelo menos do ponto de vista da terminologia empregada.
Com a intenção de iniciar a busca de respostas a essa pergunta, consultei o texto de Arendt Pensamento e considerações morais. [3]Nessa densa e belíssima conferência datada de 1970, Arendt se aventura um pouco mais na questão do que é “o mal”, e sustenta uma forte hipótese: a incapacidade de pensar está intimamente ligada à questão do mal. Seguindo a tradição kantiana, o pensar difere do conhecer, e é o único instrumento para prevenir o mal. O pensamento implica construção, questionamento, filosofia —  ela chega a nos dizer — e só a filosofia pode trazer alguma luz ao problema do mal. Mas, e isso é essencial, “a atividade de pensamento é como a teia de Penélope: desfaz-se toda manhã o que foi terminado na noite anterior” [4]. Por isso, ela afirma:
(...) se Kant está certo e a faculdade de pensar tem uma “aversão natural” a aceitar os próprios resultados como “axiomas sólidos”, então não podemos esperar da atividade de pensar nenhuma proposição ou mandamento moral, nenhum código final de conduta e muito menos uma nova, e agora supostamente final, definição do que é bem e do que é mal.” 
E ainda:
(...) o pensamento tem inevitavelmente um efeito destrutivo e corrosivo sobre todos os critérios estabelecidos, valores e medidas estabelecidos para o bem e o mal, enfim, sobre todos os costumes e regras de conduta com que lidamos em moral e ética.[5]
Fica claro que Arendt acredita que o holocausto não teria sido possível se os envolvidos, tanto as vítimas quanto os algozes, tivessem exercido a capacidade de pensar e, portanto, de questionar as ordens recebidas de seus líderes. Concordemos ou não com tal afirmação, é falha a idéia de congelar a pergunta sobre o mal com alguma sentença que a preencha positivamente, que lhe dê substância, que a resuma numa fórmula que possa ser aplicada sem dúvidas.
Muito se fala sobre a tentação do mal; valeria pensar se essa tentação não se realiza no momento em que, cansados da incerteza, optamos por alguma determinação qualquer.
A língua portuguesa permite um uso diferenciado de “mau” e “mal”.[6]É a respeito do substantivo “o mal” que está centrada a questão que nos ocupa. Duas linhas podem claramente perfilar-se. A primeira faz do mal algo menos obscuro, mais corriqueiro, do que poderia pensar-se inicialmente: “ferir”, “ofender”, “prejudicar”. É em oposição com “virtude”, “moral”, “direito” e “justiça” que radica a sutileza, a ambigüidade, embora a conotação metafísico-religiosa só seja alcançada quando “o mal” é concebido como “coisa”, reificado, como nos informa Ferrater Mora. [7]
Arendt não faz nenhuma referência a Freud: não o menciona em sua bibliografia nem alude a ele em seus textos. Esse enigmático silêncio provoca um desafio: tentar “pensar” qual seria a contribuição que, a partir da psicanálise, pode fazer-se à questão do mal. Qual seria a “teia” que a Penélope psicanalista teceu em torno do “mal”? 
O mal é sem dúvida uma questão freudiana, porém, à primeira vista a palavra “mal” não desempenha nenhum papel articulador de teoria. A exceção está na composição mal-estar. O mal-estar é, sem dúvida, um conceito de peso na concepção freudiana da cultura. 
Revisar a obra de Freud a partir de uma determinada perspectiva constitui sempre uma aventura interessante. São freqüentes as aparições de “o mal” na sua obra. A maioria delas se refere a sentidos menos controvertidos do que aqueles presentes nos verbetes dos dicionários comuns: o mal histérico, como sinônimo de doença, prejuízo, dano etc. É em um artigo, nem sempre lembrado, que Freud contribui para as discussões sobre a questão do mal nos mesmos termos empregados por Arendt. Trata-se de Reflexões para tempos de guerra e morte[8], especialmente na primeira parte intitulada “A desilusão provocada pela guerra”. Esse é um artigo anterior à reviravolta dos anos 20, precursor de outros que viriam depois: O mal-estar na civilização, Por que a guerra? e O futuro de uma ilusão.
Seu tema central é a desilusão produzida pela destruição da guerra. O patrimônio da humanidade, a inteligência, os valores superiores, até a ciência, são jogados fora em prol do espírito impiedoso da guerra em curso. O que chama a atenção de Freud é que os partícipes da guerra são justamente as nações cultas (civilizadas) e, portanto, é a própria noção de cultura, de civilização, que está em jogo. Talvez por isso mesmo Freud empregue a palavra “cultura” no texto original, a despeito da discriminação na língua alemã entre “cultura” e “civilização”.[9]A guerra fez do estrangeiro um inimigo, e do inimigo alguém que pode ser combatido e destruído sem consideração. Diz Freud:
Duas coisas nessa guerra despertaram nosso sentimento de desilusão: a baixa moralidade revelada externamente por Estados que, em suas relações internas, se intitulam guardiões dos padrões morais, e a brutalidade demonstrada por indivíduos que, enquanto participantes da mais alta civilização humana, não julgaríamos capazes de tal comportamento
Antes mesmo dos horrores da Segunda Guerra, Freud já se perguntava como era possível que pessoas partícipes da mais alta civilização fossem capazes de atos tão brutais. A possibilidade de pensar essas ações como a comprovação de que não há uma natureza boa, ou uma bondade original é descartada e no seu lugar é afirmado que:  
(...) a essência mais profunda da natureza humana consiste em impulsos instintuais de natureza elementar, semelhantes em todos os homens e que visam à satisfação de certas necessidades primevas. Em si mesmos, esses impulsos não são nem bons e nem maus. Classificamos esses impulsos, bem como suas expressões, dessa maneira, segundo sua relação com as necessidades e as exigências da comunidade humana. Deve-se admitir que todos os impulsos que a sociedade condena como maus — tomemos como representativos os egoísticos e cruéis — são de natureza primitiva.
Esses impulsos primitivos passam por um longo processo de desenvolvimento antes que se lhes permita tornarem-se ativos no adulto. São inibidos, dirigidos no sentido de outras finalidades e outros campos, mesclam-se, alteram seus objetos e revertem, até certo ponto, a seu possuidor. Formações de reação contra certos instintos assumem a forma enganadora de uma mudança em seu conteúdo, como se o egoísmo se tivesse transmudado em altruísmo ou a crueldade em piedade.[10]
No texto expressa-se a clássica posição freudiana de um mundo pulsional aético, amoral, sobre o qual se assentam de um modo precário a ética e a moral. Os valores culturais nascem da necessidade de impor limites às pulsões, mas estas nunca são totalmente dominadas. O mal é intrínseco à natureza humana, nem tanto por que exista uma natureza má no homem, senão porque tanto o mal como o bem são valores fabricados, construídos de um material sujeito a rápida deterioração. A desilusão freudiana, como ele mesmo a nomeia nesse texto, produz-se nem tanto porque na guerra os valores da convivência humana tenham caído tão baixo, senão porque nunca tinham se elevado tão alto como se pensara nos tempos de paz. Mesmo assim, a ilusão é necessária, não só porque permite poupar desprazer e sofrimento, mas também porque é inestimável arma para combater a guerra. Freud está longe do cinismo que tanto caracteriza nossos tempos. O fato de o mal ser inevitável não justifica que ele não tenha de ser combatido.  
Do ponto de vista do individuo, a posição é relativista. Ninguém é em si mesmo bom ou mau, ou melhor, todos somos bons e maus ao mesmo tempo:
(...) o caráter de uma pessoa (...) como sabemos, só de forma inadequada pode ser classificado como ‘bom’ ou ‘mau’. Raramente um ser humano é totalmente bom ou mau; via de regra ele é ‘bom’ em relação a determinada coisa e ‘mau’ em relação a outra, ou ‘bom’ em certas circunstâncias externas e em outras indiscutivelmente ‘mau’.[11]
A maldade é um componente próprio da subjetividade com o qual todos devemos conviver. 
O ponto mais questionado é aquele que se refere à moral como reguladora do que deve ser considerado bom ou mau. Nesse sentido, a contribuição freudiana possui um ponto de coincidência com a proposta de Arendt sobre o “pensamento”, nos termos em que ela define essa atividade: oposição à “razão” e ao “conhecimento”. Com efeito, ambos desconfiam, por motivos diferentes, do estabelecimento de um padrão que permitiria dirimir de uma vez  para sempre o que deve ser considerado maldade. Novas formas de maldade podem ser produzidas até no fazer justiça, e essa é uma das hipóteses que paira em todos os comentários de Arendt a respeito do julgamento de Eichmann. A insistência do mal, do pulsional, na ótica freudiana, infiltrada naquilo mesmo destinado a dominá-lo, é a essência do que mais tarde Freud definirá como mal-estar na cultura. Com a segunda teoria das pulsões e a proposta de uma pulsão de morte o mal-estar alcança uma versão bem mais apurada que poderá confirmar a célebre afirmação de Hobbes: “O homem é o lobo do homem”. 
            Vale a pena, porém, recuperar os argumentos do texto de l915. Trata-se de um verdadeiro mal-entendido acreditar que é só com a introdução da pulsão de morte que a agressividade e a crueldade aparecem na obra de Freud. Já em outra oportunidade, ocupei-me de rastrear as origens destas noções que,  em Freud remontam a seus primeiros escritos. [12]Sexualidade e crueldade, pensadas inicialmente de forma não dicotômica, são os pilares da discriminação entre neurose obsessiva e histeria. A pulsão de dominação (Bemachtigungstrieb) postulada já nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, inicia o caminho dicotômico que culminará nos anos 1920 coma formulação do conceito de “pulsão de morte”.
No texto de 1915 que nos ocupa Freud escolhe, não por acaso, o egoísmo e a crueldade como representantes dos impulsos condenáveis. Escrito quase concomitantemente com sua introdução ao narcisismo e com sua análise dos destinos das pulsões, o texto está marcado pelas reflexões em torno da constituição do “eu” e do “outro”, tão presentes nessas obras. É bom lembrar que o narcisismo é nelas definido como “o complemento libidinal do egoísmo das pulsões de autoconservação”. O amor a si mesmo e o amor ao outro entram em uma dialética de conflito infindável no qual a crueldade desempenha um papel,  por vezes, de protagonista. O narcisismo é um dos momentos mais fecundos na análise dessa temática, e não é mera coincidência que Lacan, no estádio do espelho, tomou-o como eixo central de sua teoria da constituição subjetiva e da agressividade.
É o narcisismo que também está na base da criação de fortes laços de ligação ao outro. O desamparo infantil encontra no amor e na ternura dos pais o abrigo indispensável para a sobrevivência. Essa ternura e esse amor, de natureza também narcisista, são produto, por sua vez, de uma renúncia ao narcisismo próprio, o que revela um dos rostos “bons” do narcisismo. A pluralidade de faces, de transformações desse conceito sustenta um dos pilares da sua riqueza.
Na guerra, ocorre uma ruptura dos elos eróticos que fazem do eu objeto de amor do outro e do outro, objeto de amor do eu. Para existirem matanças, genocídios, nas proporções que temos sido obrigados a aceitar como reais, é preciso ter havidos cortes de laços muito arcaicos. A psicanálise contribui com importantes conceitos para a elucidação desses fenômenos. Nas guerras a noção de outro semelhante sofre um cote, e no seu lugar surge o “estrangeiro”, o “diferente” e o “inferior”. Os ideais através dos quais o ser humano procura controlar suas pulsões contêm germens potencialmente destrutivos.
Arendt acrescenta que a matança foi só possível graças a um aparelho desumanizador totalitário que se aproveitou das brechas da modernidade para cumprir seus desígnios malignos. O ideal de perfeição racial como ideal de Estado iniciou-se retirando dos judeus sua condição de cidadãos e culminou no extermínio em massa. A autora se pergunta como isso foi possível. A infiltração do eu narcisista (eu ideal) na construção dos ideais humanos (ideal do eu), postulada por Freud, só pode enriquecer a análise de Arendt e merece também ser lembrada pelos psicanalistas. Com efeito, após a oposição feita por Lagache[13]e retomada por Lacan, entre “eu ideal” e “ideal do eu”, não é suficientemente lembrada a postulação freudiana de que um resto da imaginária onipotência infantil permanece ligado aos ideais culturais, sejam esses quais forem. O eu imaginário narcisista está presente na construção simbólica a partir da qual essa onipotência é regulada. 
A “perfeição racial”, ideal narcisista de superioridade, é o oposto de um desamparo humano original intolerável, frente às pulsões e frente ao mundo hostil. Aqui o narcisismo mostra seu rosto macabro. A crueldade se instala de um modo que só o ser humano é capaz de montar. O outro é só o espelho do indesejável. 
Estas e outras noções freudianas poderiam ter sido muito úteis a Arendt. No que se refere à colaboração das vítimas com seus algozes, um dos seus apontamentos mais chocantes, sua concepção do pensamento estreita a compreensão dos fatos. Com efeito, quando a crueldade da realidade supera qualquer ficção, o pensamento perde sua função antecipatória. Pensar é, nessas situações, só uma forma de tornar a vida tolerável, embora isso, como foi o caso, conduza à morte. Nisso Freud se enfrenta com Arendt. 
Para terminar: o livro de Arendt, propositalmente descritivo, objetivo e desapaixonado, não deixa de ilustrar o que ela mesma -e Freud -denunciam: a presença do mal no próprio ato de fazer justiça. No dizer de Annie Dymetman O estilo, rigidamente encerrado na jaula de aço da descrição técnico-científica, por sua impenetrabilidade, expressa também ele uma violência autorizada.[14]  


[1]Publicado Originalmente em; MIGUELEZ, O. Narcisismos. São Paulo: escuta, 2007 
[2]ARENDT, Hannah, Eichmann en Jerusalén.  Barcelona: Lúmen, 2000.
[3]ARENDT, Hannah.  A dignidade na política.  Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
[4]ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 151.
[5]ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 157
[6]Diz Koogan-Houaiss:
MAU adj. Que não tem as qualidades que se gostaria que tivesse. / Que faz ou tem propensão a fazer o mal: homem mau. / Que traduz maldade: olhar mau. / Sem talento, destituído de valor (neste sentido, precede o substantivo): mau poeta. / Funesto, sinistro: maus presságios. / De resultado negativo: mau negócio. / Perigoso, nocivo: mau livro. / Pouco agradável:mau humor. / - S.m.pl. Pessoas más: evite a companhia dos maus.

MAL  s.m. Aquilo que prejudica, fere, ofende, que se opõe à virtude, à moral, ao direito, à justiça. / Dano, prejuízo, malefício. / Achaque, doença, enfermidade. / Calamidade, infortúnio, desgraça. / Dor, tormento, aflição. / Estado mórbido: mal de Hansen(lepra), mal de gota(epilepsia) etc. // Cortar o mal pela raiz, agir a tempo para impedir piores conseqüências. // Fazer mal a(mulher virgem) deflorar, desonrar. // Há males que vêm para bem, certas coisas ou fatos, aparentemente danosos, acabam tendo conseqüências benéficas. // Estar, ficar, trocar de mal(com alguém), cortar relações, estar brigado com.

[7]Diz Ferrater Mora no extenso verbete “mal” do qual só selecionei alguns fragmentos:
(...) Podem-se estudar os diversos significados e usos de expressões como “o mal” (por vezes “o Mal”), “o mau” e “mau”. “O mal” e “o mau” são respectivamente, um substantivo e um adjetivo substantivado, havendo certa tendência a “reificá-los”, ou seja, a supor que existe algo que se chama “o mal” ou “o mau”. Muitas concepções metafísicas do “mal” se apóiam, implícita ou explicitamente, nessa reificação.
(...) Pode-se estudar o problema do mal do ponto de vista psicológico, sociológico, histórico, etc. Nesse caso é freqüente dar uma interpretação relativista do mal, pois se supõe que o que se diz a seu respeito depende das circunstâncias psicológicas, sociais, históricas, etc.
(...)  Alguns consideram que o mal é real não só psicológica, sociológica ou historicamente, como de um modo mais amplo, de tal maneira que os males particulares são definidos como espécies de um mal real geral.
 (...) Vários autores declararam que o problema do mal é exclusivamente de cunho moral e outros que é só de natureza metafísica.
(...) O problema da origem do mal pode dar lugar a várias soluções. Eis algumas das que têm sido propostas: a3) O mal procede em última análise de Deus ou da Causa Primeira. b3) O mal tem sua origem no homem ou em certas atividades suas. c3)O mal é conseqüência do acaso. d3) da Natureza, e3) da matéria ou de f3) outras fontes.

[8]FREUD, S. De guerra y muerte. Temas de actualidad. I. La desilusión provocada por la guerra. In: AE,Vol. XIV, 1976.
[9]Ver a respeito:LE RIDER, Jacques. Cultiver le malaise ou civilicer la culture? In Autour du “Malaise dans la culture” de Freud, Paris: PUF, 1998.
[10]FREUD, S. Op. Cit.  p. 283
[11]FREUD, S. Op. Cit. p. 283
[12]MIGUELEZ, Oscar. A agressividade na obra de Freud in Revista Boletin do Instituto Sedes Sapientiae, N. I , ano 1992. 
[13]LAGACHE, D. El modelo psicoanalítico de la personalidad.  In: LAGACHE e outros.  Los modelos de la personalidadBuenos Aires: Proteo, 1969, p. 111.
[14]DYMETMAN, Annie. O estado administrado e a banalidade do mal. In:  Novos estudos Número  57, Julho de 2000, Publicações CEBRAP.   

domingo, 9 de setembro de 2018

Narciso e Nêmesis: o ódio como paixão pelas faltas de Eco

Pedro Heliodoro Tavares, Psicanalista, Doutor em Psicanálise e Psicopatologia na Universidade Paris VII na França e em Literatura na UFSC. Após anos atuando como professor e coordenador em cursos de Psicologia foi professor da Área de Alemão da FFLCH na USP de 2011 até fevereiro deste ano, e no momento atua na área de Germanística  e na Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC. Dirige com Gilson Iannini a coleção "Obras Incompletas de Sigmund Freud" da Editora Autêntica, edição da qual também é o revisor e coordenador de tradução. Sobre o tema das traduções de Freud, realizou um Pós-Doutorado na PGET-UFSC  e mais recentemente outro no ZFL em Berlim-Alemanha. Suas publicações abordam fundamentalmente as relações entre a clínica psicanalítica e o campo das Letras. E é com esse percurso que seu olhar sobre o tema "Narcisismo das Pequenas Diferenças" apresenta-se para nós cuidadosamente trabalho palavra por palavra, letra por letra. 

La Grande Fortune (ou Némesis), de Albrecht Dürer (1501-1502)
Museu de l’Ermitage, Rússia. 



“... mas é que Narciso acha feio o que não é espelho”
Caetano Veloso

Da língua que Lacan nomeia ao início do Seminário 22 (RSI) como particularmente capaz de dar conta da imbecilidade tomamos de Plauto a famosa sentença: Nomen omen est. Quer dizer, “o nome é um presságio”. Sabemos que os antigos costumavam produzir sua cartografia imaginária a partir de nomes que veiculavam certos conceitos pelos destinos pessoais de cada uma dessas figuras míticas antropomórficas. Disso soube se apropriar a psicanálise desde seus primórdios, usando de nomes míticos como o de Édipo para tratar das vicissitudes humanas. 
N’AsMetamorfosesde Ovídio, cuja recente tradução em edição bilíngue da editora da UFSC organizada pelo grande latinista Mauri Furlan entre outros recomendo fortemente, aparecem como personagens fundantes alguns dos mais importantes conceitos analíticos: Eros (Amor), Psiquê e, claro, Narciso. Narciso ou Ναρκισσος (Narquíssos) em sua grafia e pronúncia helênicas traz em seu nome o destino do “entorpecimento”, da narcose, palavra que bem conhecemos advinda de νάρκη(nárque - dormência). Não à toa o conceito de narcisismo parece aportar essa incômoda lembrança de que a busca pela identidade a partir da autoimagem ortopédica como um todo belo e, logo, bom (kalós kai ágathos) nos põe tão aparvalhados quanto a figura mítica. 
Roberto Harari nos aponta para o curioso fato de que o autor que funda a psicanálise nos produtos de seu próprio sono, seus sonhos, operou com na metamorfose de seu nome o mesmo que fez em língua alemã com o de Narciso. Do Narzisismus, conceito de Havelock Ellis, e do nome próprio recebido do pai, Sigismund, Freud amputa as mesmas letras: “is”. Um corte que no seu nome rompe com a dimensão especular que ocupa a terceira letra, o “g”: 
 [ S I ← (G) → I S ]
Sim, todo grande conquistador sabe que só se obtém certas dádivas pagando com a carne ou com o verbo que nos constituem como imagem idêntica a nós mesmo. Há sempre que se pagar com uma libra de carne ou de letra. 
O trágico destino de Narciso, sabemos, é selado por não corresponder aos encantos da apaixonada ninfa Eco (Ηχώ), a Oréade que até então tinha também a peculiaridade de ser apaixonada de si mesma, mas não pelo aspecto físico, senão pela própria voz, sendo sempre a que tinha a “última palavra” nas contendas. Foi posteriormente, aliás, castigada por Hera, condenada a sempre repetir as últimas palavras de quem com ela ia ter em discussões. Nessas Jornadas de Maiêutica, em que também se discutirá o olhar e a voz (ver lançamento de livro previsto) como objetos pulsionais, cabe lembrar essas “pequenas diferenças” desses dois primevos autoapaixonados, autorreferenciados pela própria imagem ou pela própria voz. 
Ora, o que pode ser mais perigoso do que o ódio provocado por um amor não correspondido. Outra grande lição a ser buscada na mitologia antiga na qual abundam tais exemplos, como fora igualmente o de Eros (Amor, para os romanos) e Psiquê.  Essa última é condenada a infindáveis trabalhos por Afrodite que a quer ver distante do seu objeto de rivalidade: Amor-Eros. 
Desde Freud sabemos que, como afeto, o ódio é o mais antigo, pois somente quando o objeto ousa nos por em falta, percebemos nossa insuficiência: do ódio nasce a dinâmica objetal e o mesmo amor que ele, ao fim, impossibilita. Vivemos tempos que exacerbadamente dão testemunho desse ódio nascido dos narcisismos feridos com o quase onipresente recrudescimento das buscas por reuniões de grupos em torno de uma alegada identidade, sempre ancorada na suposta diferença da alteridade que os ameaça de seguirem sendo iguais a si mesmos. 
Aqui cabe mencionar algo trazido por Lacan em seu segundo seminário sobre o Eu, fundamentalmente, dedicado a tantas advertências quanto ao fascínio egóico. Trata-se da homofonia em francês entre as palavras egos(plural de ego, com pronúncia oxítona) e égaux(iguais). Facilmente se vê daí a apreensão de grupos nacionais ou étnicos da palavra égalité, originária do tríptico revolucionário francês, servir mais do que ao combate à desigualdade, cada vez mais ao propósito da afirmação de determinada identidadeque nega (forcluindo, denegando ou recalcando) o direito às diferençasentre os falantes que só têm em comum entre si, paradoxalmente, o fato de uma existência singular, sem par ou modelo instrucionário.
Sabemos que grandes organizações coletivas e eficazes no entorpecimento coletivo das singularidades costumam ser fundadas por um pai-S1, logo, uma alteridade excluída da cadeia: Moisés, o egípcio líder dos judeus; Hitler o austríaco líder dos alemães; Jesus, o judeu líder dos cristãos europeus; Bonaparte ítalo-córsego líder dos franceses etc. Tais agrupamentos em torno de um projeto em alguma medida supremacista, também precisam de outro tipo de alteridade para sua coesão e engajamento, precisam da identificação do diferente-ameaçador de sua identidade, um grupo fadado a um dos seguintes destinos: conversão-cura, exílio ou extermínio. Sempre uma justiça que opera antes com a espada que com a balança. Mas, certamente, não basta ser alien, diferente, já que, como lemos no célebre ensaio de 1919, só inquieta a diferença naquilo que é potencialmente familiar. Não propriamente o estranho-estrangeiro (Fremd), mas o in-familiar (Unheimlich), a inquietante estranheza familiar, que nos toca por ser parte constituinte e encoberta de nosso psiquismo, podendo aflorar malgrado os esforços egoicos por seu silenciamento. Retomando a citação de Scheling feita ali por Freud: “Chama-se unheimlicha tudo o que deveria permanecer em segredo, escondido, mas que veio à tona”.
Curioso que muitas vezes o triste destino dos atacados seja uma reação de comparável alienação massificadora, agarrando-se, diante da perseguição opressora, a frágeis construções identitárias outorgadas justamente pelo outro pausteurizador, como novas formas de massificação do singular (a igualdade na diferença). Seja aí no que tange ao pertencimento nacional, às identificações e objetos sexuais, à relação com a fé ou o sentimento mágico. Algo como a reversão dos rótulos pejorativos em razão de orgulho afirmativo identitário no caso das denominações gaúcho ou mané, a “marcha das vadias”, o orgulho gay(rapazes alegres, frívolos) o “protestantismo” luterano etc. Em decorrência disso, também, assistimos à tentativa de agrupamentos que geram novas listas categorizantes como a sequência representada pelas iniciais de LGBTTI... as quais, por sua vez, reproduzem em grande medida a tentativa dos próprios agrupamentos excludentes pela via da patologização ou criminalização da singularidade do sexual.
Pois bem, importante atentarmos para o fato de que o triste fim de narciso em suas diferentes versões - definhando diante do encantamento com seu reflexo no lago, ou mergulhando e se afogando na busca pelo encontro com sua imagem projetada nas águas (águas da loucura?) – é fruto do encantamento de Nêmesis, aquela cujo nome nos diz que “distribui” (νέμω-némo) os destinos como a grande vingadora dos deuses. Ela é quem intercede a pedido da rejeitada Eco. Curioso destino ganhou o nome Nêmesis em termos de valor semântico ao longo do tempo, sendo hoje inclusive empregado para designar o “rival ameaçador” ou “aquele que exige uma forma de retaliação”. Já em Homero tinha o nome claro valor de “desdém” ou “indignação” e em Aristóteles em sua Ética a Nicômanoo de “vingança” ou “punição”. Se de fato a vida imita o mito, nada mais certo para a ameaça de nossa fortuna, que abdicarmos da eudaimonia(εὐδαιμονία:estar em paz com o próprio daimon) - artifício próximo ao do Sinthome como possível fim-de-análise nos termos de outrora - em nome da “demonização” (δαιμον) do outro em suas pequenas diferenças.
            

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Psicanálise & Arte




Inspirados no convite para que se possa criar algo a partir das diferenças presentes nas relações e na proposta de se olhar para além dos muros que nos separam, o trabalho que tem sido feito pela “Psicanálise & Arte” compôs com as Jornadas da Maiêutica 2018, trazendo para o seu encerramento a Atividade Aberta: Performance - “O Narcisismo das Pequenas Diferenças”. 

O Narcisismo é um conceito criado por Freud a partir do mito grego Narciso, o qual se encanta pela própria imagem refletida num lago, vindo a ser tragado por ela e devorado pelas águas - que trata da constituição do eu. 

A partir do conceito de "Narcisismo" surge em Freud a noção de "Narcisismo das Pequenas Diferenças". Como bem distingue a psicanalista Betty B. Fuks , no texto "Segregação constitutiva do outro em tempos de totalitarismo":

"(...) Enquanto o narcisismo instaura um "eu" distinto de um "outro", o narcisismo das pequenas diferenças instala o "nós" diferente dos "outros". Dito de outro modo, o narcisismo das pequenas diferenças apóia-se sob a lógica da segregação, a mesma que sustenta o narcisismo propriamente dito, para fortalecer a identificação especular no interior dos grupos e distinguir aquilo que não é espelho, o não-idêntico que atrai e repele. Por isso, a intolerância aparece mais intensamente contra as pequenas diferenças do outro do que dirigidas às diferenças fundamentais. Não se trata de uma diferença qualquer, mas aquela capaz de provocar o afeto deangústia (...)".

Com isso em mente, elegemos uma expressão artística muito representativa da arte contemporânea - que a partir das décadas de 60/70 surgiu questionando os "muros" sustentados pelos enquadramentos sociais e artísticos do modernismo, promovendo aberturas para experiências culturais das mais distintas. A arte contemporânea tem como orientação predominante dirigir a criação artística às coisas do mundo, à natureza e à realidade humana; desafiando as classificações habituais e colocando em questão a própria definição de arte.

Compôs-se daí uma performance artística, combinando elementos do teatro, da poesia, das artes visuais e da música e que ganhou vida a partir de um roteiro de cinco breves Atos que colocam em cena um enredo dramatizado, poetizado, visualizado e cantado sobre "Narcisismo" e "O Narcisismo das Pequenas Diferenças".

Dá direção, contornos e tom à performance, uma trilha musical que anuncia, ato por ato, o que entrará em cena. Os três primeiros atos partem da potência consagrada na composição erudita Carmina Burana - obra do alemão Carl Orff na qual são reconhecidos elementos que reportam a uma simplicidade de compreensão - que em muito agradava aos ideólogos nazistas - seguindo pela provocativa obra de Stockhausen, “Gesang Der Jünglinge” -  composição criada,  predominantemente, a partir de alterações da voz de um menino soprano sintetizada aos sons eletrônicos, tendo a seleção dos versos privilegiado as vogais e consoantes que ressaltam as permutações de sonoridades puras e ruídos gerados eletronicamente, mantendo o máximo de controle sobre timbres vocais. 

A imponência óbvia de Carmina Burana e a marca alienígena de Stockhausen abrem espaço para Astor Piazzollaem sua composição “Close Your Eyes and Count To Ten”. Piazzolla abre a fenda da multiculturalidade, trabalhando com características do tango, do jazz e da música erudita: uma amálgama de vertentes estéticas que constitui um autêntico paradigma, chamado por ele próprio de Novo Tango.

Carmina Burana nos remete ao Narcisismo presente na constituição psíquica de todo sujeito falante e que pode assumir proporções que levem até mesmo à naturalização do “apedrejamento” do outro. Enquanto Stockhausen nos reporta à complexidade inerente a essa constituição, colocando em cena os muitos que habitam esse eu. E Piazzolla nos inspira a partir de sua marca da multiculturalidade, ao desafio de aproximação e convivência, com as nem sempre tão pequenas diferenças.

A passagem para os dois atos finais se dá através de composições de dois artistas brasileiros, Caetano Veloso e Lenine. Caetano, através de sua composição “Sampa”, canta em verso e prosa o estranhamento, o questionamento, o desconforto experimentado por um estrangeirofrente às diferenças culturais, sociais, econômicas que a metrópole paulistana provoca àquele "novo baiano" que desembarca num universo radicalmente distinto do seu, mas que pouco a pouco passa a o incorporar. Lenine, transforma em música o slogan do Instituto MetaSocial - o qual desenvolve ações junto à mídia para promover a inclusão social - "Ser Diferente é Normal"; nos convidando a revisitar o óbvio que aparecia de modo invertido na abertura da performance.

 A performance convida e provoca o público ao se despedir do espetáculo a se interrogar: mas afinal, o que "O Narcisismo das Pequenas Diferenças"  tem a ver com isso tudo?

Bom espetáculo!

Ficha Técnica:
Direção e Roteiro: Cléia Regina Canatto
Artistas: Elianne Carpes; Marcoliva e Maycon de Souza
Produção: Amanda Rabusky e Bruna da Silva
Cenário: Ana Luiza Kaminski

Músicas:
-   Carmina Burana - Carl Orff
-   Gesang Der Jünglinge - Karlheisen Stockhausen
-   Close Your Eyes And Listen- Astor Piazzolla
-   Sampa- Caetano Veloso
-   Ser Diferente é Normal- Lenine

Poemas:
-   Linaldo Guedes, Os zumbis também escutam blues e outros poemas. Textoarte Editora,  1998.
-  Ferreira Gullar, Barulhos (1980 1987). Rio de Janeiro, José Olympio, 1987.
-  Paulo Leminski, Caprichos e Relaxos. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983.