quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Narcisos Brasileiros: Pequenas Diferenças em Dimensões Continentais.



Nosso país pensado em grandezas e minúcias por Lucas de Oliveira Alves, que nos traz o narcisismo das pequenas diferenças pintado de verde e amarelo e assim nos presenteia com uma reflexão singular. 


Operários, de Tarsila do Amaral (1933)



O Brasil, país de dimensões continentais e múltiplas possibilidades de encontros e constituições, é tecido pelas pequenas diferenças. Gradativas e permeáveis, essas diferenças se evidenciam nas cores, sons, ritmos de corpos e territórios. Seu nome, assim como o de Narciso, emana da natureza e agiganta-se por ela. Sua identidade é marcada pelo falicismo da floresta imponente e a castração de sua árvore homônima – pau-brasil. Sua cultura se assenta no real da violência escravocrata, e como este real insiste em escapar à nomeação, aqui se persiste a divisão.
 Nossas rixas e divisões são as mais variadas, pois nossas proporções e discursos as outorgam. Rivalidades entre estados vizinhos, entre o sul e nordeste – especialmente explosiva em anos eleitorais – brancos e negros, pobres e ricos, esquerda e direita, mulheres e homens, indígenas e agricultores pintam o nosso quadro de animosidades. 
Sobre este aspecto, Freud, ao discutir questões do narcisismo das pequenas diferenças, já falara que comunidades de territórios adjacentes e mutuamente relacionadas, se empenham em rivalidades. Nesta discussão, o autor cita as rixas entre portugueses e espanhóis, as quais se repetem em nosso continente de veias abertas, sob novas roupagens, entre os lusófonos brasileiros e os hispanófonos argentinos.
 Na cadência da camada social que sobe e desce os morros, os brasileiros se veem refletidos no senhor e no escravo, no proprietário e no expropriado. É senhorzinho, é capitão do mato, mas também é o corpo mutilado de Zumbi e Dandara dos Palmares. Não à toa, nossas figuras folclóricas – Saci, mula-sem-cabeça – trazem a castração no real do corpo.
No Brasil contemporâneo, midiático e globalizado, a violência é naturalizada para que o significante segurança se mantenha monetizado. Alphavilles são erguidos para as classes médias e altas sentirem-se protegidas. Distopias orwellianas tornam-se reality shows de sucesso na dinâmica dos corpos vigiados e punidos. A sociedade do consumo se expande orientada pela política do gozo, enunciada na mídia global entre novelas, comerciais e telejornais.
Joel Birman, no livro Cadernos sobre o Mal (2009, p. 245), comenta: (...) hoje no Brasil há um clima de alta agressividade que permeia as relações humanas e se manifesta por múltiplos signos. A violência, desdobrada na criminalidade com níveis inéditos de crueldade, evidenciam nossa degradação simbólica.
Sabe-se, pela psicanálise, que onde faltam palavras, sobram atos. Desta maneira, a incapacidade de nomear e aceitar as diferenças, de passar da repetição à elaboração dos traumas constituintes de nossa sociedade, levam-nos ao excesso: a polícia que mais mata e mais morre, o clamor masoquista pelo coturno e pelo chumbo. Como Joel Birman comenta em conferência televisionada sobre o fascismo: “O Estado é genocida porque a polícia é treinada para matar. O outro é animalizado. Na perspectiva de Agamben, a vida qualificada transformada em vida nua”.
Os políticos brasileiros, em nome deus, da família e dos bons costumes, sabem entreter e cooptar os narcisismos com performances repletas de gestos e significantes-mestres. O teatro burlesco dos púlpitos, agressivo e politicamente incorreto, salvaguarda o boi, a bala e a bíblia e só não estupra aqueles que não são “estupráveis”.
Freud em O Tabu da Virgindade, texto que inaugura o termonarcisismo das pequenas diferenças,comenta sobre alguns dispositivos e medidas de regulação sexual e divisões de gênero ao longo da história, destacando os tabus cujos objetivos eram evitar o encontro com a diferença sexual e, consequentemente, com a castração. Textualmente, Freud (1996, p. 209) expõe: A rejeição narcísica das mulheres pelos homens está ligada ao complexo de castração e sua influência na formação da opinião sobre elas. 
Tendo como base esta concepção freudiana, algumas problematizações acerca das relações de gênero no Brasil podem ser trazidas à baila. Salários desiguais, altos índices de estupro, discursos misóginos, negação do direito ao aborto e a transfobia denotam a assimetria entre os gêneros e a persistência do poder discursivo masculino. De acordo com matéria do El País Brasil (2017):

E a realidade é que, desde 2015, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Embora essa triste honra se deva, em parte, ao enorme tamanho de seu território e sua população, o fato alarmante é que cada vez se mata mais. Segundo o Grupo Gay da Bahia, em 2016 foram assassinados, 144, 22% mais que em 2015 mas menos que em 2017: até agora, foram 183 homicídios. Um recorde histórico.

No século XVII, os significantes do racismo mataram Dandara dos Palmares. No século XXI, mata-se a transexual Dandara dos Santos. Da pequena diferença demarcada pelo significante da cor ao significante da diferença sexual – diferença que agora aparece em um corpo que escapa à normatização cis e heterossexual. Passando pelos dispositivos sociais forjados na história, como o supracitado tabu da virgindade, assiste-se na contemporaneidade tentativas de suprimir a diferença sexual dos corpos que interrogam as categorias biopolíticas hegemônicas; corpos que desorganizam a partilha do poder perpassada pelo imaginário fálico e evidenciam a lógica não-toda. 
A despeito do permanente mal-estar civilizatório e da impotência da linguagem diante das animalidades que nos caracterizam, também sabemos nos fazer brilhantemente sublimes. Conseguimos transformar a dor da injustiça em poesia musical e em notas de contemplação estética no carnaval. Os sambas, canções regionais e folclóricas louvam os corpos e territórios nacionais – suas curvas, marcas, cores e dores. Como nos fala Jorge Forbes (2016, p. 55) em “Você quer o que deseja?”:(...) “a régua e o compasso da vida brasileira vêm de sua música, e não da engenharia.”
Nas tensões das pequenas diferenças, entre tremores e explosões, o brasileiro ama o que há de belo e grotesco em sua imagem. Esta, está nas telas de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, na revista Caras, nas páginas policiais, na câmera dos celulares amadores, nas novelas, nos espetáculos futebolísticos e políticos. Suas diferenças trazem o imprevisível, o real das ruas. E naquilo que não tem nome e nunca terá, tece-se significantes, reinventa-se o desejo. O Brasil não tem fórmulas prontas, sua imagem é mutante, seu reflexo é turvo, difuso, é outro, são outros, uma roda viva.


BIRMAN, Joel. Cadernos do Mal. Rio de Janeiro: Record, 2009.

EL PAÍS BRASIL: Brasil é o céu e o inferno para os transexuais.Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/30/politica/1514633797_328738.html>. Acesso em: 24 jul. 2018.

FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? 12. ed. Barueri: Manole, 2016. 

FREUD, Sigmund. O TABU DA VIRGINDADE (CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR III) (1017).In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. 11, p. 199 – 218). Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.



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