Emília Estivalet Broide, Psicanalista, membro da APPOA , Mestre em
Saúde Pública, Doutora em Psicologia Social, Integrante do Laboratório de Psicanálise e Sociedade (USP); e Jorge
Broide, Psicanalista, membro da APPOA, Psicólogo, Professor e Analista
Institucional, Mestre e Doutor em Psicologia Social; participaram de nossas
reflexões dividindo um dos capítulos do livro escrito por eles “A psicanálise em situações sociais críticas
– metodologia clínica e intervenções” (2016 p. 43-47)
Freud e o grupo enquanto dispositivo de
alienação ou transformação: massa, grupo e sujeito
A leitura dos
textos sociais de Freud nos abre o caminho para a compreensão do que entendemos
como massa, como grupo, e a questão do sujeito nessa relação.
Em “Totem e
tabu”, Freud nos traz a questão da organização social pautada pela Horda
Primitiva. O chefe da horda, o macho mais forte, é o beneficiário de todo o
gozo. Tem o poder sobre todas as mulheres e bens produzidos pelo grupo. Sua
substituição ocorria sempre através de um crime que era uma repetição. Surge um
macho mais jovem e mais forte que mata o antigo chefe da horda e, com isso, se
apropria do poder do gozo. Em certo momento, os irmãos realizam um pacto que
possibilita que a repetição não ocorra. Todos devem fazer uma renúncia a uma
parte importante do gozo, onde todos e o novo chefe têm seus poderes limitados.
É assim que surge a Lei, como diz Lacan, com a função de ordenar o gozo. A Lei
surge, portanto, da supressão de uma parte regredida do sujeito que deseja a
realização total e imediata de seu desejo. Para que isso ocorra, é necessária a
constituição de um resto, bem como de uma clivagem que se expressa no Totem, no
Banquete Totêmico. O banquete totêmico é, portanto, a forma de realização do
gozo proibido na constituição da lei e da clivagem a que todos devem
submeter-se. Assim, com Freud, dizemos que, para que se crie a Lei, é
necessária uma clivagem do gozo, o que constitui um resto que, como sabemos,
pulsa, faz parte do Inconsciente.
Em “O
mal-estar na civilização”, Freud, seguindo o mesmo raciocínio, coloca que o ser
humano deve renunciar à realização imediata de seu desejo para que seja
possível a vida na cultura ou civilização. O princípio do prazer deve ser
transformado em princípio da realidade ou, dizendo de outra forma, o processo
primário deve ser transformado, pelo trabalho humano de elaboração, em processo
secundário. É a renúncia do puro prazer que constitui o humano. É daí que,
segundo ele, surge novamente a Lei, o reconhecimento do outro, a arte, ou seja,
a possibilidade de transformação da natureza, o trabalho que constitui o
humano. Novamente, temos um resto, clivado do sujeito, que permanece pulsando
no Inconsciente e que surge em nosso cotidiano e em todos os laços enquanto
mal-estar.
Em “Psicologia
das massas e análise do ego”, Freud nos apresenta a força da hipnose no
movimento de massas. A hipnose, neste caso, a transferência com o líder, está
calcada na experiência infantil familiar: o líder do exército, da igreja, ou de
outras instituições convoca o infantil do sujeito na relação transferencial,
fazendo com que o mesmo o idealize e o siga para sentir-se amado e protegido.
Para tanto, necessita ser massa, ser o desejo do grande Outro. A transferência
com o líder está ancorada, portanto, no resto que está clivado no sujeito e
constitui o infantil, o gozo, o mal-estar: o líder ocupa o lugar paterno que
promete a resolução do desamparo através de um ego puro prazer que goza sem
limites e que surge messiânico na transferência de massa, onde o sujeito se
aliena e se entrega. Freud contrapõe nesse texto também a massa infantilizada àquela
que se organiza para as grandes transformações da humanidade, tal como a que
estruturou uma nova vida através da Revolução Francesa.
No final da
vida, Freud (1939) escreve um de seus mais belos textos, “Moisés e o
monoteísmo”. Apresenta Moisés como um general de altíssimo nível, da corte do
Faraó Akhenaton, que havia instituído o deus único, Rá, o deus do sol. Com
isso, ele destitui a casta de sacerdotes, mas estes fazem uma contra-ofensiva e
o matam. A Moisés, leal a Akhenaton, só resta a morte ou a fuga. Ele faz então
um pacto com os hebreus para saírem do Egito, com a condição de que se
convertam a um deus único, não mais Rá, e sim um passo além, um deus sem forma,
pura palavra, puro pensamento. Para sair da adoração da imagem é necessário,
portanto, uma renúncia e uma satisfação imediata. Novamente, é o trabalho do
princípio da realidade e o processo secundário. O resto, segundo Freud,
apresenta-se no texto de duas formas: no bezerro de ouro e no assassinato do
próprio Moisés, causado pelo mal-estar, ódio, conflito, que havia ficado no
resto clivado para que fosse possível o enorme avanço intelectual que
significava o deus único e o pensamento abstrato. Novamente, temos uma luta
entre uma massa indiferenciada e um grupo que constrói uma nova possibilidade
humana com o pensamento abstrato: a civilização judaico/cristã.
Nosso trabalho de psicanalistas e
analistas institucionais, como dizíamos antes, é apostar na vida operando
naquilo que é resto/massa para que o sujeito e o grupo ganhem uma hegemonia
cada vez maior. Nos grupos e instituições, muitas vezes essa alternância
apresenta-se de forma muito rápida, quase simultânea: de um lado, o resto que
emerge enquanto bezerro de ouro, mal-estar, violência, gozo desenfreado, a
tentativa da supressão da Lei e, de outro, o desejo de mudança e saída da
alienação, o surgimento do sujeito no grupo, na tarefa.
É importante nesse momento uma
referência a Marx. Este coloca que o homem se torna homem quando pode
transformar a natureza junto com o outro. É isso que entendemos enquanto
trabalho, e fica claro que, para que haja o trabalho, sempre haverá o resto,
clivado e negado, que causa o mal-estar e que se apresenta enquanto luta de
classes e mais valia no modo de produção capitalista. O sentido do trabalho é a
possibilidade de transformar o mundo de forma coletiva, e Pichon-Rivière (1986)
já tinha isso claro quando formulou o conceito de tarefa. Um grupo, uma
instituição, só possui um sentido se tiver uma tarefa coletiva para a
transformação social que permita que o sujeito humano avance em sua luta contra
o desamparo e contra o gozo de um em detrimento da vida dos outros.
Por
conseguinte, é a partir dos textos de Freud que podemos entender que, para a
construção da cultura e do trabalho, sempre há um resto. Nos grupos e nas
instituições o resto surge com diferentes nomes e em várias formas, sempre na
transferência. Podemos dizer que a pré-tarefa que se contrapõe à tarefa,
conforme colocada por Pichon, é aquilo que surge do resto. É também o que
Bleger nos mostra como a interação sincrética e a simbiose nos grupos, famílias
e casais. É ainda na mesma direção que Bion formula os supostos básicos e o grupo
de trabalho. Há ainda a crítica de Lacan, quando diz que estes operam em
espelho. O que trabalha em espelho, sob nosso ponto de vista, são os restos,
que formam o Imaginário, em conflito com o Simbólico, diante do Real, e que
constituem massa na transferência grupal e com o coordenador.
FREUD, S. (1913[1912-13]). Totem y Tabu. In:
Obras complestas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V. XVII
_____. (1921). Psicologia da las
masas y analisis del yo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V.
XVIII.
_____. (1930). El malestar em la
cultura. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V. XXI.
_____. (1939[1934-38]). Moisés y
la religión monoteísta. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V.
XXIII.
PICHON-RIVIÈRE, E. P., QUIROGA,
A. P. Del psicoanálisis a la psicologia social. Buenos Aires: Nueva Visión,
1986.