quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Mímesis e Narcisismo em Psicanálise



Nas conversas com a Psicanálise, Cultura, Arte e Utopias, uma referência de destaque nos surge com Edson Luiz André de Sousa, Psicanalista membro da Appoa, Psicólogo especialista em Filosofia, mestre e doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universite de Paris que nos presenteou com alguns de seus textos atravessados pelo tema de nossos estudos. O autor consegue dançar com as palavras ao tempo em que propõe profundas reflexões.


As meninas de Diego Velázquez (1656)


Mímesis e Narcisismo em Psicanálise [1]

                           
                                    “A arte não cria o visível, ela torna visível”
                                                                                Paul Klee


                  O desafio de nossa experiência em psicanálise é tentar reagir ao anúncio preocupante , lúcido e melancólico de Walter Benjamin que indicava que um dos grandes problemas de nossa contemporaneidade seria um radical empobrecimento da experiência. Paradoxalmente, o movimento da modernidade que havia produzido uma relativização e problematização do lugar da verdade e do saber se encontraria com a impotência de manter viva esta ferida narcísica e então encontraríamos novos ícones compartilhados tentando apagar de uma forma autofágica expressões do singular. Não nos cabe neste ensaio decidir sobre a justeza destas hipóteses, muito amplamente desenvolvida por Benjamin,  mas sobretudo cercar o paradoxo do refluxo deste movimento que produziu aberturas de lugares discursivos. Aqui poderíamos talvez nos indagar se  a célebre proposição de Hannah Arendt desenvolvida em seu livro “A condição humana” ou seja, a passagem de um lugar de contemplação à ação não estaria confrontada com um retorno a este lugar contemplativo onde a ação se encontraria inibida pela desautorização do ato e profunda sensação de ilegitimidade que tanto ouvimos de nossos pacientes. A lógica deste movimento nos esclarece sobre noções como realidade, representação, essência e aparência, ser e parecer e conseqüentemente uma interrogação sobre o estatuto do conceito de verdade. Hannah Arendt coloca como motor desta reviravolta uma invenção técnica oriunda da descoberta científica simbolizada pelo telescópio. O conhecimento só podia então ser alcançado pela ação. Como ela diz, o telescópio, obra da mão do homem, forçou a natureza a revelar seus segredos. Vejamos o que ela escreve:
         
“Desde que o ser e a aparência se divorciaram, quando já não se esperava que a verdade se apresentasse, se revelasse e se mostrasse ao olho mental do observador, surgiu uma verdadeira necessidade de buscar a verdade atrás de aparências enganosas. Realmente, nada merecia menos fé para quem quisesse adquirir conhecimento e aproximar-se da verdade que a observação passiva ou a mera contemplação. Para que tivesse certeza, o homem tinha que verificar e, para conhecer, tinha que agir”. [1]
         
Sem dúvida muitos dos movimentos que encontramos nas histórias de nossos pacientes podemos também identificar no trabalho do próprio fazer teórico : os imperativos do narcisismo, o determinismo asfixiante da compulsão a repetição, o consolo sedutor da analogia - sintoma clássico de nossa resistência intelectual ao novo. Freud nunca perdeu isto de vista quando mostrou que o narcisismo na clínica psicanalítica impunha limites aos resultados de sua disciplina. Apontar estes elementos é reconhecer o seu lugar, a sua função e mesmo a sua legitimidade, quase a sua “natureza”. No entanto, foi fazendo resistência a estes lugares que a psicanálise surgiu. Acolhemos e reconhecemos o sintoma em sua função heróica de silenciar o polissêmico, de  paralisar o tempo, de imobilizar a vida, de suportar o desamparo subjetivo mas interpelamos seu movimento para confrontá-lo com seu fracasso.   É neste ponto preciso que acredito que uma reflexão crítica sobre os fundamentos epistemológicos, metodológicos e éticos da pesquisa e intervenção  psicanalítica não devem esquecer de alguns pressupostos de seu próprio campo. Certamente nossa disciplina não está imune de sofrer dos males que denuncia.  Um deles é certamente a fixidez de nossos esquemas mentais e teóricos. Nossa disciplina não sobrevive sem uma dimensão crítica sempre presente. 
         
É dentro desta perspectiva que me parece pertinente fazer dialogar o movimento da clínica psicanalítica com a prática poïética e estética. René Passeron propôs esta reflexão  no curso que desenvolveu na UFRGS intitulado “Por uma Filosofia da Criação”.[2]Percebemos  muitos pontos de encontro entre o fazer artístico e a operação psicanalítica. Concordamos que o conceito de ato indica exemplarmente esta intersecção. Fundamentalmente, é este ato que revela seu autor , tanto no ato artistico que produz uma obra de arte como no ato analítico que produz um novo lugar de sujeito. É a obra que produz o autor, que o anuncia e por vezes o denuncia, revelação esta produzida contra seus pensamentos e contra seus sentimentos. Aqui encontramos uma dimensão de risco e de desconhecido nestas experiências.[3]É surpreendente o quanto inúmeras reflexões e produções teóricas em psicanálise, bem como algumas condutas na clínica psicanalítica, se empenham em esclarecer certas posições que imaginaríamos estarem já conquistadas e estabelecidas: a noção de trauma, o trauma instituído no campo da repetição, a problematização da noção de representação e realidade,  o sentido da prática interpretativa. A insistência com que voltamos a estas elaborações nos indicam o quanto estão longe de estarem esclarecidas e incorporadas a nossa prática. Se precisamos mostrar insistentemente  a intersecção entre realidade e ficção é porquê  em alguma medida muitas vezes a tomamos como distintas. A lógica essencialista (sedução do natural) que Michel Maffesoli indica como uma posição moral, “O moralismo do dever ser” destitui a legitimidade das “aparências”. Maffesoli demonstra a pregnância de uma idéia desenvolvimentista no fazer teórico, sendo colocada por ele como uma ideologia dominante. Vemos, por conseguinte, que a teoria, diante da necessidade de retornar ao mesmo lugar, em sua pretensão de garantia da verdade faz um elogio camuflado ao noumenal. Como se tudo que se mostrasse fosse apriori suspeito de inautencidade. [4]
         
O fato de que a realidade em psicanálise seja fundamentalmente ficcional não esgota a questão pois caberia ainda identificar o estilo desta ficção. [5]São estes estilos que nos indicam os lugares de sujeito construídos e supostos pelas narrativas. Freud percebeu o interesse desta indagação se debruçando inúmeras vezes sobre a obra de arte. A psicanálise recupera o interesse de uma reflexão sobre a mímesis mostrando o seu lugar na condição mesma da realidade psíquica. Contrariamente a Platão que via na mímesis uma degradação da verdade, podemos pensá-la como a via régia de nossa relação ao saber. Na medida em que a psicanálise sublinha a falta radical deste objeto do desejo não nos resta outro caminho senão um retorno pela via da representação, da reconstrução mimética. A própria construção do sujeito é fruto deste movimento e foi em grande parte nestas reflexões que Jacques Lacan concebeu e construiu seu clássico ensaio “A Etapa do Espelho como formador da função do Eu”.[6]A partir destes desenvolvimentos poderíamos nos indagar:  como traçar os limites , as fronteiras entre o Eu e o Outro?  A mímesis interroga nossa forma de apreensão do mundo mostrando o fundamento destas aparências. Sabemos o quanto Platão se debatia contra estas artes da aparência, da imitação e notadamente a poesia. Como nos lembra Marc Jimenez , para Platão a arte do simulador (no caso a arte do poeta) consiste a produzir falsos semblantes, produzir simulacros que desviam a atenção tanto da realidade concreta como das essências, estas sendo tomadas como a única realidade.[7]Sabemos o quanto Platão hierarquizava e distinguia os graus de mímesis. Se pensarmos no exemplo da produção de um objeto como uma cama:  é Deus que produz a essência da cama. Esta essência é para Platão a única realidade. Quando um artesão marceneiro fabrica uma cama (forma esta inspirada na forma criada por Deus) ele copia. O pintor que, por sua vez, pinta esta cama ele nada mais faz que uma cópia da cópia. Platão chega então a conclusão que esta pintura é a forma mais degradada da mímesis. [8]Por outro lado, Aristóteles vai se opor a estes enunciados mostrando em sua poética que o ser se diz e deve necessariamente se dizer de maneiras múltiplas. Imitar e representar não podem ser pensados como degradação de um mundo ideal. 
         
Dentro deste contexto de reflexão é impossível não lembrar do clássico texto de Roger Caillois quase contemporâneo da primeira versão da Etapa do Espelho de Lacan “O Mimetismo e a psicastenia legendária”. Logo no primeiro parágrafo deste texto Caillois se preocupa com a atividade de distinguir real e imaginário, ignorância e conhecimento, organismo e meio. É da problematização destes lugares, do questionamento da fixidez narcísica que não se cansa de indicar ao sujeito “o seu lugar” de forma unívoca, enfim é esta transparência espacial onde o sintoma se aloja congelando também o tempo que a psicanálise vêm problematizar. O sujeito então acossado por outros sentidos possíveis de seu sintoma vai tentar se resituar em sua geografia subjetiva. Aqui talvez sirva de paradigma a referência que Roger Caillois faz a Minkowski . Mostra este último que é muito comum pacientes esquizofrênicos responderem a pergunta: “Aonde você está?” com respostas como: “ Eu sei onde eu estou, mas não me sinto no lugar onde me encontro”.[9]Encontraríamos então com frequência uma despersonalização pela assimilação ao espaço. O medo a escuridão mostraria esta ameaça da perda dos limites do eu. Como afirma Minkowski o eu é permeável a obscuridade. Podemos aqui lembrar do Sr. José personagem central de um dos romances de José Saramago intitulado “Todos os nomes”. Sr. José,  no escuro total da biblioteca onde se encontra procurando nos arquivos indícios da história de seu nome,  pensa o seguinte: “... homem, não tenhas medo, a escuridão em que estás metido aqui não é maior do que a que existe dentro do teu corpo, são duas escuridões separadas por uma pele, aposto que nunca tinhas pensado nisto, transportas todo o tempo de um lado para outro uma escuridão, e isso não te assusta, há bocado pouco faltou para que te pusesses aos gritos só porque imaginaste uns perigos, só porque te lembraste do pesadelo de quando eras pequeno, meu caro, tens de aprender a viver com a escuridão de fora como aprendeste a viver com a escuridão de dentro, agora levanta-te de uma vez, por favor, mete a lanterna no bolso, que não te serve de nada, guarda os papéis, já que fazes questão de os levar, entre o casaco e camisa, ou entre a camisa e a pele ...” [10]

Temos aqui uma linda imagem do que consiste o espaço de realidade e representação em psicanálise ou seja produzir deslocamentos nesta escuridão. Neste contexto a experiência psicanalítica não poderia se limitar a revelar ao sujeito o sentido oculto dos sintomas na tão clássica sedução iluminista, tão freqüente em muitas reflexões clínicas, de uma vivência da revelação. Nesta lógica o  analista estaria ali, por sua condição transferencial, como ultimo guardião de um sentido essencial. Talvez este seja um dos maiores impasses da clínica psicanalítica : deslocar os sujeitos (analista e analisando) de seus narcisismos iluminados colocando-os no campo polissêmico e elíptico de um espaço sem um único centro. É por isto que a experiência do barroco interessa a experiência psicanalítica. Como lembra Severo Sarduy em seu ensaio sobre o Barroco a passagem de uma cosmologia do círculo (forma perfeita com um centro irradiador) e cosmologia da elipse (como perturbação da forma) diz muito da intervenção psicanalítica. [11]

         Justamente o barroco como artifício, como uma “apoteose do artificio” segundo a descrição de Sarduy vai provocar esta discussão sobre o natural. A alegoria é então a degradação da narração natural. Walter Benjamin em seu clássico texto “Origem do Drama Barroco Alemão” mostrou que a reabilitação da alegoria, colocada em evidência pelo Barroco, implicou numa reabilitação da temporalidade e historicidade em oposição ao ideal de eternidade que o símbolo incarna.. A alegoria interroga esta literalidade do sentido interrogando a idéia clássica de que o sentido verdadeiro é o sentido literal. Não podemos esquecer que Alegoria vem de duas palavras em grego Allo (Outro) Agorein (dizer). Ora, não foi isto que Freud nos apontou ao demonstrar que a linguagem sempre diz outra coisa. [12]Nesta oposição entre símbolo e alegoria podemos sublinhar então que o símbolo é, e a alegoria significa. O primeiro faz fundir-se significante e significado, o segundo os separa. [13]Ora, em que estas reflexões nos interessam, em que medida encontram o espírito fundamental da experiência psicanalítica? Simplesmente mostrando que o “sentido não nasce de uma positividade primeira do objeto (perdido), mas da ausência desse objeto, ausência dita e, deste modo, tornada presente na nossa linguagem. Esse trabalho nos indica assim que o sentido não nasce tanto da plenitude e da eternidade como, também, do luto e da história, mesmo se, através deles, estamos em busca de um outro tempo.” [14]
         
Esta finitude, espinha na garganta de nosso narcisismo, é um dos motores de um deslocamento de lugares que eventualmente a experiência psicanalítica pode produzir. Freud, lembra como o jovem poeta que faz menção em seu texto de 1915 “Transitoriedade” (Vergänglichkeit) não consegue envolver-se com a beleza da natureza pois lhe preocupava a idéia de que todo o esplendor estava condenado a desaparecer e morrer.  A resposta de Freud ao poeta, que saberemos depois de tratar de Rainer Marie Rilke é comovente. Diz Freud:

“Neguei ao poeta pessimista que o caráter transitório do belo implicasse em sua desvalorização. Pelo contrário, é um incremento de seu valor ! A qualidade do transitório comporta um valor de raridade no tempo. As limitadas possibilidades de gozar-lo o tornam tanto mais precioso ... Uma flor não nos parece menos esplêndida porque suas pétalas somente estejam viçosas durante uma noite” [15]

Talvez seja este um dos efeitos fundamentais que a experiência psicanalítica pode ainda produzir na contemporaneidade: um recorte em nossos narcisismos sombrios, eternos e dogmáticos abrindo para o sujeito outras ficções do si mesmo. Se pensarmos nesta função de alegoria, lembrando a célebre pintura de Velasquez , “As Meninas” vemos um belo exemplo deste necessário trabalho de ficção uma vez que Velasquez produz diante de nossos olhos uma dupla elipse: a elipse do modelo, e a elipse da cópia. O espectador tem que reconstruir estes dois lugares deixados na sombra por Velasquez.  Michel Foucault no seu ensaio de abertura do livro “As palavras e as coisas” analisa amplamente esta pintura mostrando, entre outras coisas, que o pintor representado no quadro fixa um ponto invisível que “somos nós mesmos”. Contudo, o lugar em que somos acolhidos pelo olhar do pintor é um ponto cego o que vai conduzir Foucault a dizer que estamos como que “em excesso” na pintura. [16]É este trabalho de deslocamento constante do lugar do espectador que não tem como se livrar da pergunta :  “onde estou?” que interessa à experiência psicanalítica. É este o eixo fundamental que interroga a inércia de nossos narcisismos convictos.




[1]Este texto foi escrito a partir de uma conferência proferida  no simpósio Ciência, Representação e Realidade na Psicanálise Contemporânea realizado pelo Núcleo de pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP,  em setembro 1998


[1]ARENDT, Hannah.  A condição humana, Forense Universitária,  RJ, 1993,  p. 303
[2]Curso desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, do Instituto de Artes da UFRGS , Porto Alegre em setembro de 1998.
[3]Ver sobretudo o livro de PASSERON, René. Pour une philosophie de la Création, Klincksieck,  Paris, 1989
[4]MAFFESOLI,  Michel. No fundo das aparências, Vozes, RJ,   1996, p.157
[5]Sobre este ponto remeto o leitor ao livro de Ana Maria Medeiros da Costa,  A ficção do Si Mesmo - interpretação e ato em psicanálise, Companhia de Freud, Rio de Janeiro, 1998
[6]LACAN, Jacques. Ecrits, Seuil, Paris, 1966
[7]Ver JIMENEZ,  Marc. Qu’est-ce que l’esthétique? , Gallimard, Paris, 1997
[8]JIMENEZ, Marc. Op. cit. p. 225
[9]CAILLOIS, Roger. Le mythe et l’homme, Gallimard, Paris, 1938,  p. 111
[10]SARAMAGO, José. Todos os nomes, Companhia das Letras,  São Paulo, 1997, p. 177
[11]Ver SARDUY, Severo. Barroco, Seuil, Paris, 1975
[12]Haveria aqui inúmeras consequências no campo da ética que mereceria ser desenvolvida ao tomarmos a via do literal ou do alegórico como fundamento da construção do sentido. 
[13]TODOROV, Tzvetan. Théories du Symbole, Seuil, Paris, 1977, p. 251
[14]GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin, Perspectiva, São Paulo, 1994, p. 54
[15]FREUD, Sigmund. Lo Perecedero (1915) ,  Obras Completas,  Vol. II, Biblioteca Nueva, Madrid, 1981, p. 2118
[16]Ver FOUCAULT, Michel.  As palavras e as coisas - uma arqueologia das ciências humanas, Martins Fontes,  São Paulo, 1981

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