domingo, 26 de agosto de 2018

Do eco que (in)quieta

O Projeto Clínicas do Testemunho foi instituído pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, com o propósito de trabalhar na e para a reparação psíquica dos afetados, direta e indiretamente, pela ditadura civil-militar brasileira que vigorou de 1964 a 1985. Marilena Deschamps Silveira, Psicanalista, membro efetivo da Sigmund Freud Associação Psicanalítica, coordenou esse projeto no Núcleo SC / Instituto APPOA e neste momento, compartilha um recorte de seu percurso conosco. Teremos ainda, o privilégio de escutar um trabalho seu em nossas Jornadas na mesa "Do outro lado do muro" . 


Terei oportunidade de apresentar algumas reflexões teórico-clínicas acerca dos dispositivos que possibilitaram a escuta psicanalítica no ProjetoClínicas do Testemunho da Comissão da Anistia, do Ministério da Justiça, na minha participação na próxima Jornada da Maiêutica. O Projeto iniciou em 2013 como experiência piloto, com o propósito de proporcionar reparação psíquica aos afetados, direta e indiretamente, pela violência da ditadura civil-militar brasileira que vigorou de 1964 a 1985. Até o final de 2017, o trabalho desenvolvido por nós, psicanalistas da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e Instituto APPOA, se revelou uma importante e significativa intervenção clínico-política, marcando seus efeitos na construção de memórias e recomposição histórica. 
Porém,atítulo de contribuição para o blog, peço licença para uma comunicação bastante informal. Compartilho uma experiência de ordem privada, ocorrida durante o desenvolvimento do Projeto Clínicas do Testemunho, para tecer algumas considerações pertinentes à temática proposta como eixo na Jornada da Maiêutica - “Narcisismo das pequenas diferenças”. A experiência relaciona-se ao que provocou em mim a fala de uma colega, também psicanalista, a partir de uma breve conversa que tivemos. 
A conversa com a colega, que não fazia parte da equipe do citado Projeto, remete a uma espécie de desabafo. Compartilhava com ela minhas angústias – teórico-clínicas e “pessoais” - relativas ao desenvolvimento das intervenções dentro do Projeto e suas peculiaridades. A participação no mesmo nos conduzia para além do setting conhecido do consultório e exigia não perder de vista os fundamentos teóricos e éticos no estabelecimento do fazer clínico. Interrogava-me. Mais que isso, a escuta me fazia atravessar uma fronteira ao me tornar testemunha do absurdo da violência do sujeito humano com outro humano e, por consequência, da violência de Estado ocorrida durante o período ditatorial do nosso país. Enfim, uma conversa em que dizia do “trabalho psíquico” que me dava estar dentro do Projeto. A colega, como ouvinte, pondera sobre algumas questões e, talvez como desfecho do atravessamento das minhas pontuações nela própria, me diz “sabe, na verdade, prefiro mesmo é ficar quieta dentro do consultório”. De imediato, aquela fala faz tremer minha carne e um eco me ocupa: “não teria sido mais fácil ter ficado quieta dentro do consultório?”


Censorship, de Eric Drooker, Nova York.

Do narcisismo das pequenas diferenças
Freud nos apresenta o termo “narcisismo das pequenas diferenças”. A antítese aí presente surpreende. Pois, enquanto o narcisismo assinala o Um, o mesmo, o espelho, a quietude e o tempo que é, as diferenças nos remetem ao espaço da alteridade, do nós, da linguagem, da temporalidade, do tempo num movimento de passado, presente e futuro. Assim, habituados a contemplar esta divisão, o termo “narcisismo das pequenas diferenças” provoca uma sensação de estranhamento, possivelmente por borrar, ou esfumaçar, a fronteira entre narcisismo e diferença. As fronteiras permeáveis permitem a entrada do estrangeiro. 
Portanto, já no encontro com opróprio termo nos deparamos com a perspectiva de que o diferente, compreendido como estrangeiro e estranho, é capaz de promover uma ameaça de desarticulação. No texto de 1919, Freud nos faz compreender que o estranho é também familiar, e nos assombra por nos remeter à nossa anterioridade arcaica. Ou seja, nos reconduz a presença do outro dentro de nós. Um outro que foi fonte da nossa constituição subjetiva, e que através dessa experiência foi possível a saída do caos inicial. Porém, esse mesmo outro provocou nosso primeiro movimento hostil em relação à diferença ao nos implicar numa outra realidade que não fosse narcísica. Ou seja, a construção da alteridade se faz em movimentos pulsionais regulados através desta relação que exige renúncia para que a subjetividade se efetive. 
Por isso mesmo, Freud aponta com o termo que o narcisismo evidencia seus efeitos no enfrentamento das diferenças presentes nos laços sociais. Somos, assim, relembrados que o narcisismo que esteve nos nossos primórdios como fundamento constitutivo do “ser” não é fácil de ser abandonado. Ressurge como guardião protetor do eu sempre que o mesmo se sentir ameaçado na ruptura da sua integridade. Apesar de divisão, e não síntese, o eu se pretende forma. Apesar de precário, busca completude. 
Nesse sentido, em “Psicologia das massas e análise do eu”, Freud recorre à delicada parábola de Schopenhauer, sobre a sociedade de porcos espinhos, para assinalar que a aproximação entre as pessoas não é vivida com tranquilidade, suscitando operações que encobrem a hostilidade. Ou seja, a intimidade é espinhosa e movimenta espetadas.  Os espinhos, pensamos, dizem respeito às diferenças apresentadas pelo outro, enquanto o incremento das espetadas aponta a dificuldade de que sejam aceitas formando muros defensivos de classificação. Desta forma, o eu, ou o grupo ao qual o eu pertence, é sempre mais nobre que o outro. Retorno de “Sua majestade, o bebê”, buscamos da reflexão de Freud em “Introdução ao narcisismo” (1914). Isto é, narciso acha feio o que não é espelho, mas narciso também, primordialmente, foi sustentação da vida. 
Assim, ao tentar se desfazer da presença qualificada do outro, não reconhece a própria agressividade, mas é através do movimento agressivo que o eu luta pela afirmação da vida contra a morte, que assombra através do despedaçamento. A presença do outro semelhante sempre nos trouxe e nos apresenta um certo excesso quantitativo a ser simbolizado – corpo perfurado pelo espinho - mas quem sabe, a angústia é tanto maior e se impõe, quanto mais a realidade invade o eu com o demais – além do princípio do prazer, acompanhando Freud de 1920.  Aangústia faz abrir as portas para as armas de narciso.
Freud nos apresenta um psiquismo que trabalha sempre a serviço de dominar as excitações, internas ou externas ao organismo, de forma a alcançar satisfação e evitar o desprazer e a angústia. Mesmo que o eu não seja senhor na sua própria casa, anunciou Freud, é esta instânciaque faz contato mais imediato com a realidade e procura desempenhar a função complexa de regulação deste encontro. Trata-se de uma função complexa, que pode colocar em funcionamento as outras instânciasnuma variada produção de estratégias para resolução do mal-estar.
Assim, damos ênfase ao espinho que perfura o corpo para assinalar a ideia da dor como excesso, como desprazer, mas também para levar em conta que a espetada fura e nos atinge com o vazio de representação. Independente das condições do eu para mediar e dar conta do desprazer, faz diferença a singularidade da efetiva vivênciade excessos. Ou seja, faz diferença para um processo tradutivo a intensidade da quantidade experimentada no acontecimento. Assim, é a partir desta perspectiva que retorno à conversa citada com minha colega e ao eco que se fez dentro de mim: “Não teria sido melhor ter ficado quieta dentro do consultório?”
Recuo narcísico?
Como psicanalistas, apostamos numa escuta que dê lugar à construção da subjetividade. Sabemos, ao mesmo tempo, que toda intervenção que promova processo de subjetivação se faz eticamente, atendendo ao reconhecimento da alteridade. Desta forma, contribuímos no engendramento de laços sociais. Freud assinalou que não é possível diferenciar psicologia individual, considerando que o sujeito desde sempre esteve dependente dos laços sociais para sua constituição, e raramente poderáprescindir deles. Assim,“a psicologia individual é simultaneamente psicologia social, no sentido mais amplo, porém inteiramente legítimo” (1921). 
E neste sentido, a escuta psicanalítica clínica do consultório/privada não está reduzida a quatro paredes. No entanto, parece-nos que a psicanálise dirigida ao contexto social, às conflitivas da nossa sociedade na contemporaneidade, ainda é acanhada. Poderíamos dizer que o contexto social ainda é o estrangeiro que nos perturba na nossa própria casa? Teríamos bastante para discutir sobre.
No momento, porém, me limito a considerar o protagonismo da psicanálise com o Projeto Clínicas do Testemunho a partir da sua dimensão coletiva, social e política.  É preciso apontar que se trata de um estrangeiro bastante específico: aquilo que é da ordem do horror e do indizível.  Estamos nos referindo ao ódio advindo da intolerância à diferença, na contramão do processo civilizatório. Estamos no campo da barbárie e dos efeitos devastadores da violência para o sujeito e para o coletivo.
O eco, então, convidava-me ao recuo – não teria sido mais fácil ter ficado quieta dentro do consultório? Sim, teria sido mais fácil, pois não se escapa ileso quando se chega tão perto dos espinhos que perfuram o psiquismo com o excesso do real. Reverberações do traumático. O grito de dor do outro evoca nossa própria condição de desamparo, suspendendo a fronteira entre um e outro. Portanto, ficando quieta haveria silencio, não haveria a repercussão barulhenta dentro demim da escuta da dor de quem tenta narrar o inarrável. Ficar dentro do consultório eleva a barreira de proteção, levanta o muro - uma barreira antiestímulo. Conforto narcísico?
 Através do conforto narcísico, não percorremos o caminho do nós,do saber dos efeitos da violência de Estado sobre o sujeito, mas também sobre todo um corpo social. Neste sentido, pode a psicanálise ficar afastada da sociedade em que está inserida? Podemos silenciar?
Ou devemos nos (in)quietar

Com efeito, no que tange ao registro social, podemos apontar, amparados no discurso psicanalítico, que os atos de violência caminham na contramão de qualquer perspectiva de construção subjetiva. A ética da psicanálise tem vigor para disseminar o reconhecimento ao sujeito na sua diferença e singularidade. Nossa possibilidade de intervenção aponta para a defesa da construção de sentidos a partir da capacidade de ter o outro como semelhante na sua diferença, num compromisso com a criação de simbolizações possíveis para que se abra novas expectativas nos laços sociais. Sem o fiador psíquico, só resta ao sujeito, e ao social, na busca de alívio da tensão pulsional, passar ao ato no expoente máximo da violência: matar o outro, ou a si próprio. E a sociedade, como um todo, paga um preço por isso. 



terça-feira, 21 de agosto de 2018

Política tradicional e Política na Psicanálise – uma pequena diferença.


Se é das diferenças que se trata, o texto a seguir há de fazer uma diferenciação fundamental: a política tradicional e a política na psicanálise. Márcio Bandeira, Psicanalista, Doutor e Mestre em Psicologia pela USP e Michele Gouveia, Psicanalista, Mestre em Psicologia Social pela PUC, ambos com uma trajetória de práticas com questões de Psicanálise, sociedade e política, dividiram conosco seu trabalho sobre o tema. 

Exposição OSGÊMEOS e Banksy, Manhattan, NY, 2013

Partindo do conceito de “narcisismo das pequenas diferenças”, cuja primeira ocorrência se deu no texto de Freud intitulado “O Tabu da Virgindade (1918)”, e foi retomado para encorpar a discussão sobre a intolerância em “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1920) e para subsidiar parte da discussão entre cultura e pulsão de morte, no texto “O Mal-estar na civilização” (1930), observamos como Freud explica a intolerâncias em relação à opinião/característica/origem do outro, como sendo a diferença de algo que afeta o amor a si próprio, podendo levar o sujeito a se questionar, a dialogar, e, a ter que abrir mão da certeza sobre as suas crenças. No diálogo, a linguagem remetida ao outro é a via de escape dos desejos do sujeito, ou seja, o outro é testemunha de que nem tudo está sob o controle do sujeito.
No texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1920), Freud diz que “o amor a si encontra limite apenas no amor ao outro, amor aos objetos” (1920, p.58); e que esse amor é motivado pela busca de vantagens que ele pode oferecer. No livro “O Mal-estar na civilização” (1930), Freud enfatiza que é possível ligar muitas pessoas pelo amor de modo a compor um grupo, uma família, porém, desde que restem outras, a funcionar como prováveis alvos à exteriorização da agressividade daquele grupo unido pelo amor. Ele também mostra como a agressividade encontra seus meios de se apresentar, em especial, a partir das mínimas acentuações de diferenças entre as pessoas. É escutando o mal-estar dos sujeitos que a psicanálise denuncia o mal-estar social, ou seja, as patologias sociais. É por meio da potencialização da fala que a psicanálise produz implicações no campo político.
A compreensão da psicanálise como uma experiência política ocorre por reconhecermos que seu ato incidi sobre a coletividade, especialmente, uma coletividade que se sustenta a partir do reconhecimento/acolhimento de diferenças. Observamos nestes últimos dez anos que a discussão sobre a psicanálise e política tem se destacado nas produções acadêmicas brasileiras, nas práxis extramuros e na ampliação da compreensão do impacto da psicanálise sobre o social. 
Como exemplo dessa práxis temos: a “clínica aberta” na praça Roosevelt, em São Paulo, no qual se realiza atendimentos na rua supervisionados pela psicanalista Maria Rita Kehl; os atendimentos às vítimas do desastre de Mariana, no projeto “Refugiados de Belo Monte” organizado por vários psicanalistas, entre eles  Eliane Brum, Christian Dunker Ilana Katz; o trabalho de supervisão clínica institucional de Miriam Debieux e suas contribuições teóricas tanto sobre o desamparo social quanto sobre a dimensão sociopolítico do sofrimento; por fim, a tese do Marcelo Checchia que nos permite observar a interpenetração do Poder e da Política na clínica psicanalítica. 
É importante distinguirmos o campo da política tradicional do campo da política da psicanálise. Entendemos que a política para a psicanálise é algo que orienta o tratamento por meio do poder da fala e da relação transferencial, de modo que a psicanálise busca contribuir para a desalienação do sujeito, permitindo que ele adquira condições para reconhecer o seu desejo. No caso da política tradicional, objetiva-se determinar uma única forma de viver, fazer o Um segundo a psicanálise de Lacan, desconsiderando a diferença e homogeneizando as experiências e culturas. Nota-se na política tradicional a ausência do reconhecimento conceitual do narcisismo das pequenas diferenças, de um modo muito semelhante à supressão desse narcisismo das pequenas diferenças que ocorre dentro de um grupo de pessoas identificados entre si.
Checchia (2015) defende que a psicanálise pode contribuir para a política tradicional de várias formas, a começar pela oferta de insumos para o que a sustenta: a relação com o outro e a fala. Os efeitos são tais que a psicanálise pode inspirar atos políticos a partir de suas implicações. Em sua tese de doutorado, ele defende o ato psicanalítico como um ato político, por incidir sobre essas relações (entre a fala e o outro), e por isso “tem algum efeito no âmbito da coletividade ou da sociedade civil” (CHECCHIA, 2015, p.314).  Além disso, em sua entrevista ao site no portal PsiBr, Checchia reitera que não há garantia de que o ato psicanalítico, enquanto intervenção do analista, terá o estatuto de ato para o analisante, pois o ato pode ter valor diferente para cada sujeito.
Já a psicanalista Caterina Koltai (2016), defende numa entrevista divulgada no portal Psibr, que as implicações da psicanálise sobre a política têm o efeito de “promover a quebra das certezas, abrir a possibilidade de escuta e tolerância da diferença, e a percepção de que não existe um monopólio do bem, pois ninguém sabe o que é o bem do outro”. É nesse aspecto que o ato político da psicanálise vem a contribuir para a destituição do Um - que está na raiz do narcisismo das pequenas diferenças. Vimos que essa dimensão do narcisismo faz referência à agressividade de comunidades sobre outras, ela aparece quando um povo desqualifica outros povos apenas por serem outros. Exemplo disso é a rixa entre argentinos e brasileiros.
Compreendemos que a política tradicional tenta oferecer uma única forma de gozo. Atualmente, observamos o estímulo ao gozo do consumo, no qual o sujeito é colocado como sendo aquele que é o que consome. Consome-se uma marca buscando identificação, de modo a fazer parte de uma comunidade, favorecendo o fenômeno de supressão das pequenas diferenças, enfatizando o que há de comum entre os membros, deslocando o narcisismo das pequenas diferenças para intolerâncias entre grupos.
O Estado na sua política de tratar todos iguais sem olhar para a singularidade de suas condições sociais reduz as diferenças e faz operar a política do Um. Isto pode levar os sujeitos a uma situação de desamparo discursivo, que ocorre “onde o discurso social e político, carregado de interesses e visando manter ou expandir seu poder, mascara-se de discurso do Outro (campo da linguagem) para capturar o sujeito em sua constituição subjetiva”, operando em uma destituição subjetiva (ROSA, 2016, p.23-24).
Sem adesão à política do Um, comum nas propostas da política tradicional, o sujeito fica inerte a toda violência. Isso pode ser notado no cenário político brasileiro atual, pois, observamos a paralização da população em meio a perda de direitos, que incluem saúde, educação e leis trabalhistas; o que nos leva a perceber e defender que cada vez mais esse lugar de fala precisa ser ampliado. A intolerância, fruto do narcisismo das pequenas diferenças, que aparece nos discursos de ódio e de intolerância política deve ser compreendida como um sintoma social.  Frente a ela, entendemos que a fala deve ser potencializada de modo a permitir o reestabelecimento do diálogo. Do mesmo modo que em todos os bons diálogos encontramos espaço para a escuta e a tolerância de divergências, partindo do reconhecimento de que não existe um bem comum para todos, é possível engendrar um lugar comum em que as diferenças estejam inclusas, assim como as várias formas de viver.
REFEREÊNCIAS
CHECCHIA, M.A (2015). Poder e política na clínica psicanalítica.Annablume. São Paulo.
CHECCHIA, M.A (2015). Entrevista concedida a Lucia de Paiva. Primeira entrevista da série Psicanálise e Política II. Canal PsiBr. Disponível em: https://psicanalise-e-politica.psibr.com.br/
FREUD, S. (1918/ 2006). O Tabu da virgindade (contribuições à psicologia do amor III. Vol. XI. Imago. Rio de Janeiro.
_______(1920/ 2011).Psicologia das massas e análise do eu. Vol. XV. Companhia das letras. São Paulo.
________1930/ 2010). O Mal – estar na civilização. Vol. XVIII. Companhia das letras. São Paulo.
ROSA, D, M.(2015).A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento.  Escuta. São Paulo.
KOLTAI, C. (2016) Entrevista concedida a Aline Souza Martins. Terceira entrevista da série Psicanálise e Política II. Canal PsiBr. Disponível em: https://psicanalise-e-politica.psibr.com.br/

*Psicanalista, Doutor e Mestre em Psicologia pela USP. Atua em consultório particular, é docente na UNINOVE, e Colaborador Voluntário do Ambulatório de Transtornos Somatoformes do IPq do Hospital das Clínicas de SP.  Foi membro do grupo Margens Clínicas realizando atendimento à vítimas de violência policial na baixada santista de SP. E-mail: marciobandeira@gmail.com

**Psicanalista, Mestre em Psicologia Social e pela PUC-SP. Atua em consultório particular, é colaboradora convidada do projeto Laborar do Instituto Sedes Sapientiae, e aluna especial do Núcleo de Psicanálise, Sociedade e Política da USP. E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Narcisos Brasileiros: Pequenas Diferenças em Dimensões Continentais.



Nosso país pensado em grandezas e minúcias por Lucas de Oliveira Alves, que nos traz o narcisismo das pequenas diferenças pintado de verde e amarelo e assim nos presenteia com uma reflexão singular. 


Operários, de Tarsila do Amaral (1933)



O Brasil, país de dimensões continentais e múltiplas possibilidades de encontros e constituições, é tecido pelas pequenas diferenças. Gradativas e permeáveis, essas diferenças se evidenciam nas cores, sons, ritmos de corpos e territórios. Seu nome, assim como o de Narciso, emana da natureza e agiganta-se por ela. Sua identidade é marcada pelo falicismo da floresta imponente e a castração de sua árvore homônima – pau-brasil. Sua cultura se assenta no real da violência escravocrata, e como este real insiste em escapar à nomeação, aqui se persiste a divisão.
 Nossas rixas e divisões são as mais variadas, pois nossas proporções e discursos as outorgam. Rivalidades entre estados vizinhos, entre o sul e nordeste – especialmente explosiva em anos eleitorais – brancos e negros, pobres e ricos, esquerda e direita, mulheres e homens, indígenas e agricultores pintam o nosso quadro de animosidades. 
Sobre este aspecto, Freud, ao discutir questões do narcisismo das pequenas diferenças, já falara que comunidades de territórios adjacentes e mutuamente relacionadas, se empenham em rivalidades. Nesta discussão, o autor cita as rixas entre portugueses e espanhóis, as quais se repetem em nosso continente de veias abertas, sob novas roupagens, entre os lusófonos brasileiros e os hispanófonos argentinos.
 Na cadência da camada social que sobe e desce os morros, os brasileiros se veem refletidos no senhor e no escravo, no proprietário e no expropriado. É senhorzinho, é capitão do mato, mas também é o corpo mutilado de Zumbi e Dandara dos Palmares. Não à toa, nossas figuras folclóricas – Saci, mula-sem-cabeça – trazem a castração no real do corpo.
No Brasil contemporâneo, midiático e globalizado, a violência é naturalizada para que o significante segurança se mantenha monetizado. Alphavilles são erguidos para as classes médias e altas sentirem-se protegidas. Distopias orwellianas tornam-se reality shows de sucesso na dinâmica dos corpos vigiados e punidos. A sociedade do consumo se expande orientada pela política do gozo, enunciada na mídia global entre novelas, comerciais e telejornais.
Joel Birman, no livro Cadernos sobre o Mal (2009, p. 245), comenta: (...) hoje no Brasil há um clima de alta agressividade que permeia as relações humanas e se manifesta por múltiplos signos. A violência, desdobrada na criminalidade com níveis inéditos de crueldade, evidenciam nossa degradação simbólica.
Sabe-se, pela psicanálise, que onde faltam palavras, sobram atos. Desta maneira, a incapacidade de nomear e aceitar as diferenças, de passar da repetição à elaboração dos traumas constituintes de nossa sociedade, levam-nos ao excesso: a polícia que mais mata e mais morre, o clamor masoquista pelo coturno e pelo chumbo. Como Joel Birman comenta em conferência televisionada sobre o fascismo: “O Estado é genocida porque a polícia é treinada para matar. O outro é animalizado. Na perspectiva de Agamben, a vida qualificada transformada em vida nua”.
Os políticos brasileiros, em nome deus, da família e dos bons costumes, sabem entreter e cooptar os narcisismos com performances repletas de gestos e significantes-mestres. O teatro burlesco dos púlpitos, agressivo e politicamente incorreto, salvaguarda o boi, a bala e a bíblia e só não estupra aqueles que não são “estupráveis”.
Freud em O Tabu da Virgindade, texto que inaugura o termonarcisismo das pequenas diferenças,comenta sobre alguns dispositivos e medidas de regulação sexual e divisões de gênero ao longo da história, destacando os tabus cujos objetivos eram evitar o encontro com a diferença sexual e, consequentemente, com a castração. Textualmente, Freud (1996, p. 209) expõe: A rejeição narcísica das mulheres pelos homens está ligada ao complexo de castração e sua influência na formação da opinião sobre elas. 
Tendo como base esta concepção freudiana, algumas problematizações acerca das relações de gênero no Brasil podem ser trazidas à baila. Salários desiguais, altos índices de estupro, discursos misóginos, negação do direito ao aborto e a transfobia denotam a assimetria entre os gêneros e a persistência do poder discursivo masculino. De acordo com matéria do El País Brasil (2017):

E a realidade é que, desde 2015, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Embora essa triste honra se deva, em parte, ao enorme tamanho de seu território e sua população, o fato alarmante é que cada vez se mata mais. Segundo o Grupo Gay da Bahia, em 2016 foram assassinados, 144, 22% mais que em 2015 mas menos que em 2017: até agora, foram 183 homicídios. Um recorde histórico.

No século XVII, os significantes do racismo mataram Dandara dos Palmares. No século XXI, mata-se a transexual Dandara dos Santos. Da pequena diferença demarcada pelo significante da cor ao significante da diferença sexual – diferença que agora aparece em um corpo que escapa à normatização cis e heterossexual. Passando pelos dispositivos sociais forjados na história, como o supracitado tabu da virgindade, assiste-se na contemporaneidade tentativas de suprimir a diferença sexual dos corpos que interrogam as categorias biopolíticas hegemônicas; corpos que desorganizam a partilha do poder perpassada pelo imaginário fálico e evidenciam a lógica não-toda. 
A despeito do permanente mal-estar civilizatório e da impotência da linguagem diante das animalidades que nos caracterizam, também sabemos nos fazer brilhantemente sublimes. Conseguimos transformar a dor da injustiça em poesia musical e em notas de contemplação estética no carnaval. Os sambas, canções regionais e folclóricas louvam os corpos e territórios nacionais – suas curvas, marcas, cores e dores. Como nos fala Jorge Forbes (2016, p. 55) em “Você quer o que deseja?”:(...) “a régua e o compasso da vida brasileira vêm de sua música, e não da engenharia.”
Nas tensões das pequenas diferenças, entre tremores e explosões, o brasileiro ama o que há de belo e grotesco em sua imagem. Esta, está nas telas de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, na revista Caras, nas páginas policiais, na câmera dos celulares amadores, nas novelas, nos espetáculos futebolísticos e políticos. Suas diferenças trazem o imprevisível, o real das ruas. E naquilo que não tem nome e nunca terá, tece-se significantes, reinventa-se o desejo. O Brasil não tem fórmulas prontas, sua imagem é mutante, seu reflexo é turvo, difuso, é outro, são outros, uma roda viva.


BIRMAN, Joel. Cadernos do Mal. Rio de Janeiro: Record, 2009.

EL PAÍS BRASIL: Brasil é o céu e o inferno para os transexuais.Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/30/politica/1514633797_328738.html>. Acesso em: 24 jul. 2018.

FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? 12. ed. Barueri: Manole, 2016. 

FREUD, Sigmund. O TABU DA VIRGINDADE (CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR III) (1017).In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (v. 11, p. 199 – 218). Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.



quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Mímesis e Narcisismo em Psicanálise



Nas conversas com a Psicanálise, Cultura, Arte e Utopias, uma referência de destaque nos surge com Edson Luiz André de Sousa, Psicanalista membro da Appoa, Psicólogo especialista em Filosofia, mestre e doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universite de Paris que nos presenteou com alguns de seus textos atravessados pelo tema de nossos estudos. O autor consegue dançar com as palavras ao tempo em que propõe profundas reflexões.


As meninas de Diego Velázquez (1656)


Mímesis e Narcisismo em Psicanálise [1]

                           
                                    “A arte não cria o visível, ela torna visível”
                                                                                Paul Klee


                  O desafio de nossa experiência em psicanálise é tentar reagir ao anúncio preocupante , lúcido e melancólico de Walter Benjamin que indicava que um dos grandes problemas de nossa contemporaneidade seria um radical empobrecimento da experiência. Paradoxalmente, o movimento da modernidade que havia produzido uma relativização e problematização do lugar da verdade e do saber se encontraria com a impotência de manter viva esta ferida narcísica e então encontraríamos novos ícones compartilhados tentando apagar de uma forma autofágica expressões do singular. Não nos cabe neste ensaio decidir sobre a justeza destas hipóteses, muito amplamente desenvolvida por Benjamin,  mas sobretudo cercar o paradoxo do refluxo deste movimento que produziu aberturas de lugares discursivos. Aqui poderíamos talvez nos indagar se  a célebre proposição de Hannah Arendt desenvolvida em seu livro “A condição humana” ou seja, a passagem de um lugar de contemplação à ação não estaria confrontada com um retorno a este lugar contemplativo onde a ação se encontraria inibida pela desautorização do ato e profunda sensação de ilegitimidade que tanto ouvimos de nossos pacientes. A lógica deste movimento nos esclarece sobre noções como realidade, representação, essência e aparência, ser e parecer e conseqüentemente uma interrogação sobre o estatuto do conceito de verdade. Hannah Arendt coloca como motor desta reviravolta uma invenção técnica oriunda da descoberta científica simbolizada pelo telescópio. O conhecimento só podia então ser alcançado pela ação. Como ela diz, o telescópio, obra da mão do homem, forçou a natureza a revelar seus segredos. Vejamos o que ela escreve:
         
“Desde que o ser e a aparência se divorciaram, quando já não se esperava que a verdade se apresentasse, se revelasse e se mostrasse ao olho mental do observador, surgiu uma verdadeira necessidade de buscar a verdade atrás de aparências enganosas. Realmente, nada merecia menos fé para quem quisesse adquirir conhecimento e aproximar-se da verdade que a observação passiva ou a mera contemplação. Para que tivesse certeza, o homem tinha que verificar e, para conhecer, tinha que agir”. [1]
         
Sem dúvida muitos dos movimentos que encontramos nas histórias de nossos pacientes podemos também identificar no trabalho do próprio fazer teórico : os imperativos do narcisismo, o determinismo asfixiante da compulsão a repetição, o consolo sedutor da analogia - sintoma clássico de nossa resistência intelectual ao novo. Freud nunca perdeu isto de vista quando mostrou que o narcisismo na clínica psicanalítica impunha limites aos resultados de sua disciplina. Apontar estes elementos é reconhecer o seu lugar, a sua função e mesmo a sua legitimidade, quase a sua “natureza”. No entanto, foi fazendo resistência a estes lugares que a psicanálise surgiu. Acolhemos e reconhecemos o sintoma em sua função heróica de silenciar o polissêmico, de  paralisar o tempo, de imobilizar a vida, de suportar o desamparo subjetivo mas interpelamos seu movimento para confrontá-lo com seu fracasso.   É neste ponto preciso que acredito que uma reflexão crítica sobre os fundamentos epistemológicos, metodológicos e éticos da pesquisa e intervenção  psicanalítica não devem esquecer de alguns pressupostos de seu próprio campo. Certamente nossa disciplina não está imune de sofrer dos males que denuncia.  Um deles é certamente a fixidez de nossos esquemas mentais e teóricos. Nossa disciplina não sobrevive sem uma dimensão crítica sempre presente. 
         
É dentro desta perspectiva que me parece pertinente fazer dialogar o movimento da clínica psicanalítica com a prática poïética e estética. René Passeron propôs esta reflexão  no curso que desenvolveu na UFRGS intitulado “Por uma Filosofia da Criação”.[2]Percebemos  muitos pontos de encontro entre o fazer artístico e a operação psicanalítica. Concordamos que o conceito de ato indica exemplarmente esta intersecção. Fundamentalmente, é este ato que revela seu autor , tanto no ato artistico que produz uma obra de arte como no ato analítico que produz um novo lugar de sujeito. É a obra que produz o autor, que o anuncia e por vezes o denuncia, revelação esta produzida contra seus pensamentos e contra seus sentimentos. Aqui encontramos uma dimensão de risco e de desconhecido nestas experiências.[3]É surpreendente o quanto inúmeras reflexões e produções teóricas em psicanálise, bem como algumas condutas na clínica psicanalítica, se empenham em esclarecer certas posições que imaginaríamos estarem já conquistadas e estabelecidas: a noção de trauma, o trauma instituído no campo da repetição, a problematização da noção de representação e realidade,  o sentido da prática interpretativa. A insistência com que voltamos a estas elaborações nos indicam o quanto estão longe de estarem esclarecidas e incorporadas a nossa prática. Se precisamos mostrar insistentemente  a intersecção entre realidade e ficção é porquê  em alguma medida muitas vezes a tomamos como distintas. A lógica essencialista (sedução do natural) que Michel Maffesoli indica como uma posição moral, “O moralismo do dever ser” destitui a legitimidade das “aparências”. Maffesoli demonstra a pregnância de uma idéia desenvolvimentista no fazer teórico, sendo colocada por ele como uma ideologia dominante. Vemos, por conseguinte, que a teoria, diante da necessidade de retornar ao mesmo lugar, em sua pretensão de garantia da verdade faz um elogio camuflado ao noumenal. Como se tudo que se mostrasse fosse apriori suspeito de inautencidade. [4]
         
O fato de que a realidade em psicanálise seja fundamentalmente ficcional não esgota a questão pois caberia ainda identificar o estilo desta ficção. [5]São estes estilos que nos indicam os lugares de sujeito construídos e supostos pelas narrativas. Freud percebeu o interesse desta indagação se debruçando inúmeras vezes sobre a obra de arte. A psicanálise recupera o interesse de uma reflexão sobre a mímesis mostrando o seu lugar na condição mesma da realidade psíquica. Contrariamente a Platão que via na mímesis uma degradação da verdade, podemos pensá-la como a via régia de nossa relação ao saber. Na medida em que a psicanálise sublinha a falta radical deste objeto do desejo não nos resta outro caminho senão um retorno pela via da representação, da reconstrução mimética. A própria construção do sujeito é fruto deste movimento e foi em grande parte nestas reflexões que Jacques Lacan concebeu e construiu seu clássico ensaio “A Etapa do Espelho como formador da função do Eu”.[6]A partir destes desenvolvimentos poderíamos nos indagar:  como traçar os limites , as fronteiras entre o Eu e o Outro?  A mímesis interroga nossa forma de apreensão do mundo mostrando o fundamento destas aparências. Sabemos o quanto Platão se debatia contra estas artes da aparência, da imitação e notadamente a poesia. Como nos lembra Marc Jimenez , para Platão a arte do simulador (no caso a arte do poeta) consiste a produzir falsos semblantes, produzir simulacros que desviam a atenção tanto da realidade concreta como das essências, estas sendo tomadas como a única realidade.[7]Sabemos o quanto Platão hierarquizava e distinguia os graus de mímesis. Se pensarmos no exemplo da produção de um objeto como uma cama:  é Deus que produz a essência da cama. Esta essência é para Platão a única realidade. Quando um artesão marceneiro fabrica uma cama (forma esta inspirada na forma criada por Deus) ele copia. O pintor que, por sua vez, pinta esta cama ele nada mais faz que uma cópia da cópia. Platão chega então a conclusão que esta pintura é a forma mais degradada da mímesis. [8]Por outro lado, Aristóteles vai se opor a estes enunciados mostrando em sua poética que o ser se diz e deve necessariamente se dizer de maneiras múltiplas. Imitar e representar não podem ser pensados como degradação de um mundo ideal. 
         
Dentro deste contexto de reflexão é impossível não lembrar do clássico texto de Roger Caillois quase contemporâneo da primeira versão da Etapa do Espelho de Lacan “O Mimetismo e a psicastenia legendária”. Logo no primeiro parágrafo deste texto Caillois se preocupa com a atividade de distinguir real e imaginário, ignorância e conhecimento, organismo e meio. É da problematização destes lugares, do questionamento da fixidez narcísica que não se cansa de indicar ao sujeito “o seu lugar” de forma unívoca, enfim é esta transparência espacial onde o sintoma se aloja congelando também o tempo que a psicanálise vêm problematizar. O sujeito então acossado por outros sentidos possíveis de seu sintoma vai tentar se resituar em sua geografia subjetiva. Aqui talvez sirva de paradigma a referência que Roger Caillois faz a Minkowski . Mostra este último que é muito comum pacientes esquizofrênicos responderem a pergunta: “Aonde você está?” com respostas como: “ Eu sei onde eu estou, mas não me sinto no lugar onde me encontro”.[9]Encontraríamos então com frequência uma despersonalização pela assimilação ao espaço. O medo a escuridão mostraria esta ameaça da perda dos limites do eu. Como afirma Minkowski o eu é permeável a obscuridade. Podemos aqui lembrar do Sr. José personagem central de um dos romances de José Saramago intitulado “Todos os nomes”. Sr. José,  no escuro total da biblioteca onde se encontra procurando nos arquivos indícios da história de seu nome,  pensa o seguinte: “... homem, não tenhas medo, a escuridão em que estás metido aqui não é maior do que a que existe dentro do teu corpo, são duas escuridões separadas por uma pele, aposto que nunca tinhas pensado nisto, transportas todo o tempo de um lado para outro uma escuridão, e isso não te assusta, há bocado pouco faltou para que te pusesses aos gritos só porque imaginaste uns perigos, só porque te lembraste do pesadelo de quando eras pequeno, meu caro, tens de aprender a viver com a escuridão de fora como aprendeste a viver com a escuridão de dentro, agora levanta-te de uma vez, por favor, mete a lanterna no bolso, que não te serve de nada, guarda os papéis, já que fazes questão de os levar, entre o casaco e camisa, ou entre a camisa e a pele ...” [10]

Temos aqui uma linda imagem do que consiste o espaço de realidade e representação em psicanálise ou seja produzir deslocamentos nesta escuridão. Neste contexto a experiência psicanalítica não poderia se limitar a revelar ao sujeito o sentido oculto dos sintomas na tão clássica sedução iluminista, tão freqüente em muitas reflexões clínicas, de uma vivência da revelação. Nesta lógica o  analista estaria ali, por sua condição transferencial, como ultimo guardião de um sentido essencial. Talvez este seja um dos maiores impasses da clínica psicanalítica : deslocar os sujeitos (analista e analisando) de seus narcisismos iluminados colocando-os no campo polissêmico e elíptico de um espaço sem um único centro. É por isto que a experiência do barroco interessa a experiência psicanalítica. Como lembra Severo Sarduy em seu ensaio sobre o Barroco a passagem de uma cosmologia do círculo (forma perfeita com um centro irradiador) e cosmologia da elipse (como perturbação da forma) diz muito da intervenção psicanalítica. [11]

         Justamente o barroco como artifício, como uma “apoteose do artificio” segundo a descrição de Sarduy vai provocar esta discussão sobre o natural. A alegoria é então a degradação da narração natural. Walter Benjamin em seu clássico texto “Origem do Drama Barroco Alemão” mostrou que a reabilitação da alegoria, colocada em evidência pelo Barroco, implicou numa reabilitação da temporalidade e historicidade em oposição ao ideal de eternidade que o símbolo incarna.. A alegoria interroga esta literalidade do sentido interrogando a idéia clássica de que o sentido verdadeiro é o sentido literal. Não podemos esquecer que Alegoria vem de duas palavras em grego Allo (Outro) Agorein (dizer). Ora, não foi isto que Freud nos apontou ao demonstrar que a linguagem sempre diz outra coisa. [12]Nesta oposição entre símbolo e alegoria podemos sublinhar então que o símbolo é, e a alegoria significa. O primeiro faz fundir-se significante e significado, o segundo os separa. [13]Ora, em que estas reflexões nos interessam, em que medida encontram o espírito fundamental da experiência psicanalítica? Simplesmente mostrando que o “sentido não nasce de uma positividade primeira do objeto (perdido), mas da ausência desse objeto, ausência dita e, deste modo, tornada presente na nossa linguagem. Esse trabalho nos indica assim que o sentido não nasce tanto da plenitude e da eternidade como, também, do luto e da história, mesmo se, através deles, estamos em busca de um outro tempo.” [14]
         
Esta finitude, espinha na garganta de nosso narcisismo, é um dos motores de um deslocamento de lugares que eventualmente a experiência psicanalítica pode produzir. Freud, lembra como o jovem poeta que faz menção em seu texto de 1915 “Transitoriedade” (Vergänglichkeit) não consegue envolver-se com a beleza da natureza pois lhe preocupava a idéia de que todo o esplendor estava condenado a desaparecer e morrer.  A resposta de Freud ao poeta, que saberemos depois de tratar de Rainer Marie Rilke é comovente. Diz Freud:

“Neguei ao poeta pessimista que o caráter transitório do belo implicasse em sua desvalorização. Pelo contrário, é um incremento de seu valor ! A qualidade do transitório comporta um valor de raridade no tempo. As limitadas possibilidades de gozar-lo o tornam tanto mais precioso ... Uma flor não nos parece menos esplêndida porque suas pétalas somente estejam viçosas durante uma noite” [15]

Talvez seja este um dos efeitos fundamentais que a experiência psicanalítica pode ainda produzir na contemporaneidade: um recorte em nossos narcisismos sombrios, eternos e dogmáticos abrindo para o sujeito outras ficções do si mesmo. Se pensarmos nesta função de alegoria, lembrando a célebre pintura de Velasquez , “As Meninas” vemos um belo exemplo deste necessário trabalho de ficção uma vez que Velasquez produz diante de nossos olhos uma dupla elipse: a elipse do modelo, e a elipse da cópia. O espectador tem que reconstruir estes dois lugares deixados na sombra por Velasquez.  Michel Foucault no seu ensaio de abertura do livro “As palavras e as coisas” analisa amplamente esta pintura mostrando, entre outras coisas, que o pintor representado no quadro fixa um ponto invisível que “somos nós mesmos”. Contudo, o lugar em que somos acolhidos pelo olhar do pintor é um ponto cego o que vai conduzir Foucault a dizer que estamos como que “em excesso” na pintura. [16]É este trabalho de deslocamento constante do lugar do espectador que não tem como se livrar da pergunta :  “onde estou?” que interessa à experiência psicanalítica. É este o eixo fundamental que interroga a inércia de nossos narcisismos convictos.




[1]Este texto foi escrito a partir de uma conferência proferida  no simpósio Ciência, Representação e Realidade na Psicanálise Contemporânea realizado pelo Núcleo de pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP,  em setembro 1998


[1]ARENDT, Hannah.  A condição humana, Forense Universitária,  RJ, 1993,  p. 303
[2]Curso desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, do Instituto de Artes da UFRGS , Porto Alegre em setembro de 1998.
[3]Ver sobretudo o livro de PASSERON, René. Pour une philosophie de la Création, Klincksieck,  Paris, 1989
[4]MAFFESOLI,  Michel. No fundo das aparências, Vozes, RJ,   1996, p.157
[5]Sobre este ponto remeto o leitor ao livro de Ana Maria Medeiros da Costa,  A ficção do Si Mesmo - interpretação e ato em psicanálise, Companhia de Freud, Rio de Janeiro, 1998
[6]LACAN, Jacques. Ecrits, Seuil, Paris, 1966
[7]Ver JIMENEZ,  Marc. Qu’est-ce que l’esthétique? , Gallimard, Paris, 1997
[8]JIMENEZ, Marc. Op. cit. p. 225
[9]CAILLOIS, Roger. Le mythe et l’homme, Gallimard, Paris, 1938,  p. 111
[10]SARAMAGO, José. Todos os nomes, Companhia das Letras,  São Paulo, 1997, p. 177
[11]Ver SARDUY, Severo. Barroco, Seuil, Paris, 1975
[12]Haveria aqui inúmeras consequências no campo da ética que mereceria ser desenvolvida ao tomarmos a via do literal ou do alegórico como fundamento da construção do sentido. 
[13]TODOROV, Tzvetan. Théories du Symbole, Seuil, Paris, 1977, p. 251
[14]GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin, Perspectiva, São Paulo, 1994, p. 54
[15]FREUD, Sigmund. Lo Perecedero (1915) ,  Obras Completas,  Vol. II, Biblioteca Nueva, Madrid, 1981, p. 2118
[16]Ver FOUCAULT, Michel.  As palavras e as coisas - uma arqueologia das ciências humanas, Martins Fontes,  São Paulo, 1981

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Lançamento do livro "O olhar e a voz na clínica psicanalítica”

Uma das atividades programadas para as Jornadas 2018 é o lançamento do livro “O olhar e a voz na clínica psicanalítica” dos organizadores Djulia Justen e Maurício Maliska que, nesse momento, fazem breve apresentação sobre o que nos espera.



Imagem utilizada na divulgação das Jornadas 2016
            Este livro reúne os textos apresentados nas Jornadas da Maiêutica de 2016 intituladas O olhar e a voz na clínica psicanalítica”. Trata-se, portanto, de uma publicação institucional da Maiêutica Florianópolis que traduz a atmosfera produtiva daquela Jornada. O livro foi organizado pelo Coordenador da Comissão das Jornadas de 2016 e pela atual Coordenadora da Comissão de Publicações e contou com colaboração da equipe desta Comissão. 
            Nosso propósito em organizar esta coletânea foi o de levar ao público textos plurais sobre o tema do olhar e da voz, esses dois objetos pulsionais ─ ditos lacanianos, frente aos quais podemos precisar dizendo “não sem Freud” ─ presentes na clínica psicanalítica. Deste modo, o livro é composto de textos de psicanalistas de diversas latitudes (franceses, argentinos e brasileiros), oriundos de formações psicanalíticas diferentes, com percursos igualmente diferentes, na medida em que há jovens analistas e analistas mais experientes dando sua palavra, falando línguas diferentes, mas orientados pelas insígnias fundadoras dos pilares da psicanálise, convergindo nas diferenças e apresentando a singularidade da leitura de cada um ao seu tempo em relação aos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan.          
            Para este momento prévio ao lançamento - que será realizado na sexta-feira, dia 28 de setembro, após a conferência de abertura das Jornadas, apresentamos a estrutura do livro e os textos que o compuseram. Dividimos-o em seções que seguem o mesmo ordenamento daquelas realizadas nas Jornadas de 2016. Dessa forma, o livro possui três seções: O olhar, a voz e o sujeitoNos primórdios... a voz e o olharDe uma voz a outra.
            A primeira seção abre a obra com o texto de Jean-Michel Vives, Metapsicologia do ponto surdo: perspectivas teórica e clínica. Nele o autor se lança no desafio legítimo e necessário de apresentar a metapsicologia da sua teoria do ponto surdo, parafraseando o movimento de Freud na metapsicologia do inconsciente, como possibilidade de instaurar tal ponto para constituir o falasser. O texto O que vemos e o que nos olha, de Djulia Justen, discorre sobre a cisão subjetiva do ato de ver, apontando os espaços-tempos em que o olhar como objeto airrompe a partir de escanções e desdobramentos do título homônimo do livro de Georges Didi-Huberman, da narrativa Ulisses, de James Joyce e da A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud. O texto de Everton Michel Soccol, A voz e (é) a lei, estabelece algumas relações entre a voz e a lei, esta última entendida como elemento essencial da castração para a constituição do sujeito em suas estruturas neuróticas, perversas e psicóticas. Além disso, o autor busca relacionar a falha da lei da castração com o efeito de excesso na norma jurídica.
            A segunda seção inicia com o texto de Inês Catão intitulado A linguagem como mistério não revelado: a identificação primordial na constituição do sujeito, nos autismos e no final de análise. Nele a autora aborda a identificação primordial na constituição do sujeito tendo o autismo e o fim de análise como referência. Daniel Zimmermann, por motivos pessoais, não pôde estar presente nas Jornadas, mas aquilo que infelizmente não foi possível escutar “a viva voz”, agora será possível ler. O texto O olhar e a voz em nossa práticaversa sobre dois objetos pulsionais em questão a partir de um dos poucos fragmentos clínicos que Jacques Lacan apresenta em seus seminários e de um caso descrito por Sándor Ferenczi. No texto No princípio era o verbo... E o verbo não se fez carne, de Luana de Araújo Lima Vizentin, há questões pertinentes, a partir de um fragmento clínico, sobre os limites e as possibilidades de uma clínica psicanalítica do autismo ou com autistas: o que tem a psicanálise a ver com o autismo? Ou ainda: o que efetivamente a psicanálise (ou a prática clínica) avança nesse aspecto?
            A terceira e última seção da obra inicia com o texto de Claire Gillie, Novas vozes: transexualismo, transvocalismo e transfiguração. Nele há uma importante articulação entre voz e transexualidade. A autora aborda esse tema extremamente atual e pertinente para a psicanálise através de sua experiência clínica na condução de entrevistas e análises de sujeitos transexuais. Ilda Rodriguez contribui com o texto Incidências clínicas da voz, em que a autora parte de um extrato clínico para pensar a dimensão pulsional da voz no interior da clínica e da constituição do sujeito. O texto de Maurício Maliska, De um ritmo vocal, encerra a obra ao trazer a relação da voz com o ritmo, mostrando o quanto a pulsão invocante introduz a dimensão cadente do objeto a(voz), como aquilo que cai, mas também como aquilo que produz ritmo e movimento. O autor busca a relação do traço unário com um traço musical, seguindo os desenvolvimentos de Alain Didier-Weill, e apresenta um extrato clínico em que essa dimensão do ritmo vocal é pensada a partir dos vetores da sexualidade.
            Para finalizar esta breve apresentação, fazemos o convite, tanto para a presença no lançamento quanto para leitura do livro, com o desejo de que os pedaços de olhar e de voz nele esquadrinhados, por vezes esquartejados, possam costurar e tecer um texto que em cada um produza efeitos singulares.

Djulia Justen
Maurício Eugênio Maliska
Organizadores

Comissão de Publicações
Amanda Rabusky
Djulia Justen (Coordenação)
Gustavo Castello Branco Beirão