terça-feira, 21 de agosto de 2018

Política tradicional e Política na Psicanálise – uma pequena diferença.


Se é das diferenças que se trata, o texto a seguir há de fazer uma diferenciação fundamental: a política tradicional e a política na psicanálise. Márcio Bandeira, Psicanalista, Doutor e Mestre em Psicologia pela USP e Michele Gouveia, Psicanalista, Mestre em Psicologia Social pela PUC, ambos com uma trajetória de práticas com questões de Psicanálise, sociedade e política, dividiram conosco seu trabalho sobre o tema. 

Exposição OSGÊMEOS e Banksy, Manhattan, NY, 2013

Partindo do conceito de “narcisismo das pequenas diferenças”, cuja primeira ocorrência se deu no texto de Freud intitulado “O Tabu da Virgindade (1918)”, e foi retomado para encorpar a discussão sobre a intolerância em “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1920) e para subsidiar parte da discussão entre cultura e pulsão de morte, no texto “O Mal-estar na civilização” (1930), observamos como Freud explica a intolerâncias em relação à opinião/característica/origem do outro, como sendo a diferença de algo que afeta o amor a si próprio, podendo levar o sujeito a se questionar, a dialogar, e, a ter que abrir mão da certeza sobre as suas crenças. No diálogo, a linguagem remetida ao outro é a via de escape dos desejos do sujeito, ou seja, o outro é testemunha de que nem tudo está sob o controle do sujeito.
No texto “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1920), Freud diz que “o amor a si encontra limite apenas no amor ao outro, amor aos objetos” (1920, p.58); e que esse amor é motivado pela busca de vantagens que ele pode oferecer. No livro “O Mal-estar na civilização” (1930), Freud enfatiza que é possível ligar muitas pessoas pelo amor de modo a compor um grupo, uma família, porém, desde que restem outras, a funcionar como prováveis alvos à exteriorização da agressividade daquele grupo unido pelo amor. Ele também mostra como a agressividade encontra seus meios de se apresentar, em especial, a partir das mínimas acentuações de diferenças entre as pessoas. É escutando o mal-estar dos sujeitos que a psicanálise denuncia o mal-estar social, ou seja, as patologias sociais. É por meio da potencialização da fala que a psicanálise produz implicações no campo político.
A compreensão da psicanálise como uma experiência política ocorre por reconhecermos que seu ato incidi sobre a coletividade, especialmente, uma coletividade que se sustenta a partir do reconhecimento/acolhimento de diferenças. Observamos nestes últimos dez anos que a discussão sobre a psicanálise e política tem se destacado nas produções acadêmicas brasileiras, nas práxis extramuros e na ampliação da compreensão do impacto da psicanálise sobre o social. 
Como exemplo dessa práxis temos: a “clínica aberta” na praça Roosevelt, em São Paulo, no qual se realiza atendimentos na rua supervisionados pela psicanalista Maria Rita Kehl; os atendimentos às vítimas do desastre de Mariana, no projeto “Refugiados de Belo Monte” organizado por vários psicanalistas, entre eles  Eliane Brum, Christian Dunker Ilana Katz; o trabalho de supervisão clínica institucional de Miriam Debieux e suas contribuições teóricas tanto sobre o desamparo social quanto sobre a dimensão sociopolítico do sofrimento; por fim, a tese do Marcelo Checchia que nos permite observar a interpenetração do Poder e da Política na clínica psicanalítica. 
É importante distinguirmos o campo da política tradicional do campo da política da psicanálise. Entendemos que a política para a psicanálise é algo que orienta o tratamento por meio do poder da fala e da relação transferencial, de modo que a psicanálise busca contribuir para a desalienação do sujeito, permitindo que ele adquira condições para reconhecer o seu desejo. No caso da política tradicional, objetiva-se determinar uma única forma de viver, fazer o Um segundo a psicanálise de Lacan, desconsiderando a diferença e homogeneizando as experiências e culturas. Nota-se na política tradicional a ausência do reconhecimento conceitual do narcisismo das pequenas diferenças, de um modo muito semelhante à supressão desse narcisismo das pequenas diferenças que ocorre dentro de um grupo de pessoas identificados entre si.
Checchia (2015) defende que a psicanálise pode contribuir para a política tradicional de várias formas, a começar pela oferta de insumos para o que a sustenta: a relação com o outro e a fala. Os efeitos são tais que a psicanálise pode inspirar atos políticos a partir de suas implicações. Em sua tese de doutorado, ele defende o ato psicanalítico como um ato político, por incidir sobre essas relações (entre a fala e o outro), e por isso “tem algum efeito no âmbito da coletividade ou da sociedade civil” (CHECCHIA, 2015, p.314).  Além disso, em sua entrevista ao site no portal PsiBr, Checchia reitera que não há garantia de que o ato psicanalítico, enquanto intervenção do analista, terá o estatuto de ato para o analisante, pois o ato pode ter valor diferente para cada sujeito.
Já a psicanalista Caterina Koltai (2016), defende numa entrevista divulgada no portal Psibr, que as implicações da psicanálise sobre a política têm o efeito de “promover a quebra das certezas, abrir a possibilidade de escuta e tolerância da diferença, e a percepção de que não existe um monopólio do bem, pois ninguém sabe o que é o bem do outro”. É nesse aspecto que o ato político da psicanálise vem a contribuir para a destituição do Um - que está na raiz do narcisismo das pequenas diferenças. Vimos que essa dimensão do narcisismo faz referência à agressividade de comunidades sobre outras, ela aparece quando um povo desqualifica outros povos apenas por serem outros. Exemplo disso é a rixa entre argentinos e brasileiros.
Compreendemos que a política tradicional tenta oferecer uma única forma de gozo. Atualmente, observamos o estímulo ao gozo do consumo, no qual o sujeito é colocado como sendo aquele que é o que consome. Consome-se uma marca buscando identificação, de modo a fazer parte de uma comunidade, favorecendo o fenômeno de supressão das pequenas diferenças, enfatizando o que há de comum entre os membros, deslocando o narcisismo das pequenas diferenças para intolerâncias entre grupos.
O Estado na sua política de tratar todos iguais sem olhar para a singularidade de suas condições sociais reduz as diferenças e faz operar a política do Um. Isto pode levar os sujeitos a uma situação de desamparo discursivo, que ocorre “onde o discurso social e político, carregado de interesses e visando manter ou expandir seu poder, mascara-se de discurso do Outro (campo da linguagem) para capturar o sujeito em sua constituição subjetiva”, operando em uma destituição subjetiva (ROSA, 2016, p.23-24).
Sem adesão à política do Um, comum nas propostas da política tradicional, o sujeito fica inerte a toda violência. Isso pode ser notado no cenário político brasileiro atual, pois, observamos a paralização da população em meio a perda de direitos, que incluem saúde, educação e leis trabalhistas; o que nos leva a perceber e defender que cada vez mais esse lugar de fala precisa ser ampliado. A intolerância, fruto do narcisismo das pequenas diferenças, que aparece nos discursos de ódio e de intolerância política deve ser compreendida como um sintoma social.  Frente a ela, entendemos que a fala deve ser potencializada de modo a permitir o reestabelecimento do diálogo. Do mesmo modo que em todos os bons diálogos encontramos espaço para a escuta e a tolerância de divergências, partindo do reconhecimento de que não existe um bem comum para todos, é possível engendrar um lugar comum em que as diferenças estejam inclusas, assim como as várias formas de viver.
REFEREÊNCIAS
CHECCHIA, M.A (2015). Poder e política na clínica psicanalítica.Annablume. São Paulo.
CHECCHIA, M.A (2015). Entrevista concedida a Lucia de Paiva. Primeira entrevista da série Psicanálise e Política II. Canal PsiBr. Disponível em: https://psicanalise-e-politica.psibr.com.br/
FREUD, S. (1918/ 2006). O Tabu da virgindade (contribuições à psicologia do amor III. Vol. XI. Imago. Rio de Janeiro.
_______(1920/ 2011).Psicologia das massas e análise do eu. Vol. XV. Companhia das letras. São Paulo.
________1930/ 2010). O Mal – estar na civilização. Vol. XVIII. Companhia das letras. São Paulo.
ROSA, D, M.(2015).A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento.  Escuta. São Paulo.
KOLTAI, C. (2016) Entrevista concedida a Aline Souza Martins. Terceira entrevista da série Psicanálise e Política II. Canal PsiBr. Disponível em: https://psicanalise-e-politica.psibr.com.br/

*Psicanalista, Doutor e Mestre em Psicologia pela USP. Atua em consultório particular, é docente na UNINOVE, e Colaborador Voluntário do Ambulatório de Transtornos Somatoformes do IPq do Hospital das Clínicas de SP.  Foi membro do grupo Margens Clínicas realizando atendimento à vítimas de violência policial na baixada santista de SP. E-mail: marciobandeira@gmail.com

**Psicanalista, Mestre em Psicologia Social e pela PUC-SP. Atua em consultório particular, é colaboradora convidada do projeto Laborar do Instituto Sedes Sapientiae, e aluna especial do Núcleo de Psicanálise, Sociedade e Política da USP. E-mail: michelegouveia.psi@gmail.com

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