quarta-feira, 27 de junho de 2018

Por que se reescreve a história


A relação entre os povos, a cultura, a agressividade e as marcas da história são temas que têm nos interessado e a muitos estudiosos de áreas diversas. Nicolina Luiza de Petta, Historiadora especialista em História Social, Professora e Autora de livros didáticos e paradidáticos, passeou pelo tempo para nos trazer alguns desses aspectos olhados pela lente das diferenças. 



POR QUE SE REESCREVE A HISTÓRIA
                                                                  Nicolina Luiza de Petta
                                                               
A Antropologia já havia teorizado que os primeiros grupos humanos modernos surgiram na África e, posteriormente, migraram para outros continentes. Quando o genoma humano foi mapeado, ficou comprovado que os antropólogos estão corretos.
 Homens e mulheres da atualidade pertencem ao grupo denominado homo sapiens sapiens. Antes de seu aparecimentojá haviam passado pelo planeta outros hominídeos, cuja existência remonta há mais de seis milhões de anos. Todos os demais grupos de hominídeos desapareceram, o sapiens, que posteriormente foi elevado à categoria de sapiens sapiens, é o único homo remanescente. Dessa forma, temos todos a mesma origem, somos variedades do mesmo, mas o tronco é um só. 
Não há base real de sustentação para ideologias sobre grupos humanos superiores ou inferiores. Mas não é isso que se verifica ao longo da história. Ao que parece, a dificuldade em lidar com as variações do mesmo é muito grande. Em muitos casos torna-se uma impossibilidade. Por isso o variável, ou seja, o outro, tem de desaparecer, não existir ou, no mínimo, deixar de ser homo.
Era comum na Antiguidade os vencedores de uma guerra transformarem os vencidos em escravos, tirando-lhes o caráter humano ao transformá-los em ferramenta de trabalho. Era o processo de coisificação observado em muitos momentos da história, cujo resultado mais visível era fazer desaparecer o diferente, aquele que não deveria existir para não colocar em questão o modo de vida e o poder do povo vencedor. 
Chama a atenção de quem estuda o período a crueldade dos assírios, povo que ocupou a Mesopotâmia no século XX a.C., ao lidar com os adversários derrotados nas guerras. Em geral, os derrotados pelo exército assírio tinham a cabeça decepada, e seus corpos decapitados eram expostos nas ruas das cidades conquistadas. A decapitação excluía aos vencidos a identidade humana. Deixavam de ser a variação, o outro. Nos casos em que a rivalidade era maior, em que havia maior resistência no exército inimigo, os assírios esfolavam os vencidos. O ato de tirar toda a pele de uma pessoa revela o grau da necessidade de fazer o outro desaparecer. 
É possível perceber, nessa crueldade excessiva com o inimigo mais renhido, o quanto os assírios precisavam reafirmar aos demais povos, e a eles mesmos, a sua superioridade bélica. Esse é um ponto recorrente na história humana. Quanto maior é a capacidade do outro de questionar nossas certezas, nossas crenças, de criar em nós dúvidas e questionamentos, mais ferozmente ele tem de ser varrido do mapa.
Assim fizeram os conquistadores espanhóis, no século XVI, ao destruírem a então moderna cidade de Tenochtitlán, capital do império asteca, e sobre suas ruínas construírem a cidade do México. A grandeza representada por Tenochtitlán e pelo povo asteca tinha de ser apagada naquele momento em que os espanhóis tomavam as terras dos astecas e, mais ainda, do passado glorioso daquele povo, a fim de não deixar dúvidas sobre a crença de superioridade alimentada pelos conquistadores europeus em relação aos povos da América. 
A necessidade de tornar o outro inexistente – no presente e no passado – responde ao risco de descobrir o próprio erro ou descobrir que existem outras possibilidades além daquela que dá sustentação à certeza existencial. Essa questão se evidencia no longo debate que teve início no século XV sobre a existência ou não de alma nos índios americanos e nos africanos da África Subsaariana. Os europeus, depois de mil anos de doutrinação religiosa sobre o pecado, se depararam com povos que viviam felizes, com pouca roupa ou totalmente nus, que amavam, que cuidavam com afeto de suas crianças, que dançavam, cantavam e combatiam sem carregarem o sentido – e o temor – do pecado. Diante desse quadro é lícito supor que se perguntassem sobre a validade e necessidade de todo o esforço em não cometer as ações apontadas como responsáveis pela condenação eterna da alma. Em outras palavras, será que essa história de pecado é para valer?
A fim de escaparem do dilema da dúvida ou, mais grave ainda, de descobrirem que viviam um engano, muitos se apressaram a decretar que índios e africanos subsaarianos não tinham alma. Portanto, podiam viver em pecado – de acordo com a noção de pecado dos europeus – porque não tinham alma para salvar.   
Essa conclusão servia a dois propósitos: tranquilizar os corações aflitos com a existência ou não do pecado; facilitar a exploração tanto de índios quanto de africanos como mão de obra escrava. Não tendo alma não eram criaturas de Deus, portanto não seria pecado esgotar-lhes as forças no trabalho, fazer deles propriedades, separar famílias etc.
No caso dos indígenas, os poucos que resistiram à violência dos europeus colonizadores foram salvos graças à necessidade da Igreja de Roma em fazer frente à Reforma Protestante. O papado precisava conquistar novos fiéis para compensar a debandada para as denominações protestantes; a Companhia de Jesus formou a linha de frente da conversão dos povos recém conhecidos e viu na população da América espanhola e portuguesa um vasto campo de doutrinação e catequese. 
Nessa tarefa os jesuítas batiam de frente com os traficantes de escravos. Os interessados na exploração dos índios defendiam, a seu favor, a tese da ausência de alma. Para solucionar o impasse o papa Paulo III assinou, em 1537, a Encíclica Sublimis Deusafirmando “que os índios são verdadeiramente homens e que eles não só são capazes de compreender a fé católica, como, segundo nos informaram, anseiam sobremaneira recebê-la”. Não confirmou explicitamente a existência da alma, mas garantiu aos jesuítas o direito de defender os índios – inclusive com armas – dos caçadores de escravos.   
Aos africanos, por sua vez, não foi oferecida a possibilidade de trocarem a escravidão pela catequese. Pagaram de forma trágica pela casualidade de serem a variedade que colocava em questão a crença na existência do pecado bíblico e, portanto, punha em risco as bases de sustentação da mentalidade judaico-cristã.  
Era comum, na minha experiência em sala de aula, observar as crianças e os adolescentes ficarem muito comovidos quando eu trabalhava o poema A mãe do cativo, de Castro Alves, que narra o desgosto de uma mãe escrava embalando um filho que ela sabe que terá pouquíssimas chances de um futuro feliz. Os jovens se comoviam com essa infelicidade, sem se darem conta que eram – e ainda são – contemporâneos de milhões de mães que embalam filhos igualmente sem futuro. Nas ruas das grandes cidades, nas regiões onde impera a miséria, nos grotões esquecidos do mundo. 
Essa experiência leva a pensar que quando as variedades estão perdidas nas páginas dos livros não representam ameaça, mas se estão próximas no tempo ou no espaço e nos tira do conforto dos iguais a misericórdia acaba rapidamente. É possível que daqui a dois séculos os professores de História – se ainda existirem – ao mostrarem a seus alunos as cenas de violência observadas atualmente entre partidários de tendências políticas divergentes no Brasil, observem nos jovens o espanto e a dificuldade em entender porque uma população tão necessitada de união para superar a pobreza e a ignorância se divide e luta contra si mesma.     





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