quarta-feira, 13 de junho de 2018

CAMALEÕES EM BRANCO E PRETO E BORBOLETAS SEM ASAS...

Diante da proposta de trazer imagens que ilustrem o narcisismo das pequenas diferenças, Cléia Canatto trouxe também seu relato, propôs questões e criações.



Florianópolis, 2018 - retratos da autora de Grafiti na sede da Previdência Social no centro da cidade






Moro no centro da cidade e se não fosse esse o meu trajeto para levar diariamente minha filha à Escola, possivelmente essa imagem não teria me chamado tanto a atenção -  mesmo enquanto apreciadora das mais diversas expressões artísticas - quando muito a identificaria como mais uma criação interessante, em meio a tantas que o artista plástico Rodrigo Rizo espalha pela cidade, sendo os camaleões considerados a sua marca registrada.

Mas, ali foi diferente... 
Desde meados de 2016, acompanhei as transformações ocorridas naquele espaço, daí numa certa manhã aquele Grafiti  ter me impactado tanto... O que inicialmente era mais uma fachada de um órgão público, transformou-se progressivamente numa fachada de um espaço privado daqueles que são conhecidos por alguns como "mendigos", "pedintes", por outros como "drogados", por outros ainda como "moradores de rua". Isso foi se dando pouco a pouco, sendo que no início um ou outro se acomodava ao redor da sede. No verão, eles e seus corpos; com a chegada do inverno, eles, seus corpos, um ou outro cachorro dormindo ao lado, algumas cobertas e alguns pertences como mochilas, sacolas, garrafas. 

Progressivamente, tanto o número de pessoas quanto a diversidade dos pertences foram se multiplicando; não havendo mais um ou outro acomodado em pontos do espaço, tampouco com aqueles mesmos pertences. Até então, presenças e pertences discretos amparados pela naturalização que se faz dessa realidade, passavam até mesmo desapercebidos por aqueles que ali transitavam. Naturalização percebida a partir de como os transeuntes se deslocavam por aquele espaço. Muitos deles caminhavam apressadamente e desviavam daquilo que já era sabido ali  estar e de como desviar. Outros, expressando certo receio de chegar muito perto e possivelmente serem abordados para darem alguma esmola - aqueles que possivelmente os vêem como mendigos; outros ainda, parecendo temer serem agredidos - aqueles que talvez os vêem como drogados; e aqueles também que pareciam se surpreender; outros, se comover; outros ainda, se indignar...

Aquela escultura de humanos que ali se multiplicava, cresceu não somente em número, pouco a pouco aquele espaço parecia deixar de representar somente a possibilidade de terem um teto para dormir ao anoitecer e acordar antes que a Previdência Social abrisse suas portas. 
Elegeram-no como sua casa, passando a ali permanecerem por todo o dia com seus pertences, transformando aquele espaço de concreto aberto, num projeto de casa; onde as barracas e os guarda chuvas foram sendo utilizados para a delimitação de espaços outros; duas bicicletas foram estacionadas alinhadas aos cantos-garagens; os cachorros acordaram e despertos  circulavam atentos aos seus donos; as roupas saíram dos corpos e das mochilas e em algum momento ocuparam os varais; uma vassoura dava sinais das tentativas de manter aquela casa limpa. Ali permaneceram por algum tempo. 

Numa dada manhã, observei que tanto o número de pessoas que ali morava, quanto os pertences que lhes acompanhavam, voltaram àquela configuração inicial, de menos pessoas com menos pertences. O projeto de casa parecia ter sido abandonado. Ainda assim, um ou outro ali permanecia. Passado mais um tempo, numa outra manhã fui surpreendida com um tapume pintado de branco cercando todo aquele espaço, contendo ali a seguinte informação: "Obra de Revitalização - INSS". Pensei: “hum... uma Revitalização...”

                                               "Revitalização: "substantivo feminino / ação, processo ou efeito de revitalizar, 
                                               de dar nova vida a alguém ou a algo.Ex. sua revitalização deveu-se a um
                                              novo amor / série de ações mais ou menos planejadas, geralmente
                                              provenientes de um grupo, comunidade etc., que buscam dar novo vigor, nova
                                               vida a alguma coisa. Ex. é preciso promover uma revitalização da cultura
                                               nesta cidade".(Definição extraída de dicionário on-line).

Mais uma vez pensei: “que (...) ação, processo ou efeito de revitalizar, de dar nova vida a alguém ou a algo (...); seria implementada naquele espaço?”  
A revitalização em questão se ocuparia de dar nova vida a alguém, àquelas pessoas que ali moravam? Ou a algo, àquele espaço físico? A ambos? A nenhum?

A cada manhã que ali passava, o tapume branco me provocava a pensar: “o que acontecerá com esse espaço, que nunca mais passará em branco por mim?” Uma resposta ali apareceu. Rodrigo Rizo grafitou naquele tapume de ponta à ponta, dois camaleões, em cores distintas, acompanhados da seguinte frase exclamativa : "Só através do amor é possível alcançar a paz"!

Muitos meses se passaram desde então e lá permaneceu a obra. Tempos depois, do outro lado do prédio, no outro tapume, um artista anônimo grafitou: "Borboletas"...
Os significantes camaleões e borboletas me sugeriram um terceiro: transformação...
Ainda que bem saibamos que a noção de transformação se aplica aos outros bichos, que não ao 'bicho-homem' e que em se tratando desse segundo, quando muito podemos pensar em algumas possibilidades de mudança, me interrogava: “afinal, de onde viriam os tais amor paz que possibilitariam àquelas pessoas que lá pousaram sem asas, alguma mudança que lhes atendesse às necessidades mínimas que ali ensaiaram vir a ter?”

Momento em que me perguntava: “que possibilidades poderiam ser pensadas, no que diz respeito à viabilização de uma escuta analítica em situações sociais críticas?” Advertida de que isso, evidentemente, representaria o desafio de construir metodologia e intervenção próprias que sustentassem um trabalho distinto do que sabemos se dar no clássico Setting analítico.

Desde então, essa experiência me instigou a estar mais atenta àquilo que já havia escutado em alguns contextos acerca da psicanálise em extensão. Entretanto, nesse momento, a partir de algo de uma outra ordem, provocativa, me interrogando naquelas manhãs sobre: “de onde viriam os tais amor paz que possibilitassem àquelas pessoas que lá pousaram sem asas, alguma mudança que lhes atendesse às necessidades mínimas que ali ensaiaram vir a ter? O que, um psicanalista escreveria naquele muro?”

Ainda que as noções de amor e paz para a psicanálise possam se apresentar  radicalmente distintas do que aquela que a frase grafitada sugere; talvez pudéssemos pensar ali numa escuta analítica, onde o desejo do analista operasse como motor para sustentação de algum trabalho, que muito longe de possibilitar atingir a paz, provocasse alguma mudança mínima que fosse, para que as borboletas dali espantadas pudessem alçar vôos singelos que fossem, exatamente à altura de suas possibilidades e limitações, na exata e não diferente altura de todo analisante que chega até os nossos consultórios.

Questionamento, aparentemente ingênuo, equivocado, desavisado... se considerarmos que isso, definitivamente, não diz respeito à psicanálise e que pensar o contrário significaria negar as suas limitações, ou seja um dos seus conceitos centrais, a castração. 
Bem, se assim fosse, enquanto psicanalistas nos caberia nos ampararmos na máxima acerca da psicanálise em intenção e comungar com o entendimento que me parece cada vez mais questionável que colocaria a intenção de um lado e a extensão de outro, colocando em cena a clássica discussão acerca da psicanálise aplicada.

Tema que me reporta a uma fala por ocasião da XV Jornada Brasileira de Convergência - CER-BRASIL, em meados de 2017, em Porto Alegre, onde o psicanalista Luciano Elia ao discorrer sobre o porquê havia escolhido o título para o seu texto ali a ser apresentado: "O desejo do psicanalista presentifica a intensão na extensão e se estende à política"; lançava a seguinte interrogação:

                                             "(...) Por que colocamos o desejo do psicanalista no ponto
                                              mesmo de junção, de articulação da intensão com a extensão? 
                                              Poderíamos supor que o desejo do psicanalista, por ser o ponto
                                              mais nobre, mas avançado, do que se pode chegar em uma análise, diria
                                              respeito eminentemente ao campo da intensão, da experiência analítica que se
                                             desenvolve entre psicanalisante e psicanalista. Isso é verdade, mas justamente
                                              o que estamos propondo é que é esse desejo, e não qualquer outro, que é
                                              exigível para que o psicanalista atue no campo da psicanálise em extensão e
                                              incida no laço social para além dos limites estritos do laço analítico com o
                                              sujeito em análise, presentificando a psicanálise no mundo, função definida por
                                              Lacan como sendo a de sua Escola.(...)"
         

Mais adiante, no que diz respeito à psicanálise em intenção e extensão, o autor segue:

                                     (...)um primeiro cuidado a tomar, pelo bem do rigor, é portanto o de
                                             não confundir a categoria psicanálise em extensão (que só ganha sentido em
                                             relação com sua contrapartida psicanálise em intensão) com psicanálise
                                            aplicada, por exemplo, ao campo público, da saúde mental ou campos afins, da
                                             intervenção em espaços urbanos públicos como a rua, por exemplo (o que se
                                            apresenta hoje como uma possibilidade e até certo ponto uma exigênciaética
                                            para os psicanalistas). O plano da extensão constitui a função da Escola de
                                             Psicanálise ao presentificar a psicanálise no mundo e assegurar os meios de
                                            sua transmissão, seja pela formação de seus operadores (novos psicanalistas), 
                                            seja pela dedução de o que é um psicanalista (através do passe), mas
                                            justamente não pelo ensino da psicanálise, que não é função da Escola, mas
                                            dos psicanalistas por sua conta e risco (...)".

Oportuno registrar, que as questões levantadas pelo Autor, em vários momentos daquele contexto de Convergência integravam também outros discursos, não representando um discurso isolado, ao contrário, corroborando inclusive relatos de experiências que já haviam passado por aquela Mesa de Trabalhos. Experiência em que, efetivamente, se vivenciou  um espaço de abertura para que as diferenças fossem faladas, escutadas e refletidas... Assim como, se produzisse trabalho a partir da Divergência, com possibilidades de conferir ainda mais legitimidade a um movimento de Convergência.

No momento em que na Maiêutica lançamos como tema institucional  "O Narcisismo das Pequenas Diferenças", sinto-me instigada ainda mais a escutar e debater  as diferenças no que diz respeito também a outras práxis da psicanálise que transcendam as paredes dos nossos Consultórios e ousem pensar e propor uma escuta analítica nos mais distintos contextos, podendo chegar até mesmo às ruas da cidade... 

Por fim, retomo agora o Convite lançado no blog para enviarmos imagens que nos viessem à mente sobre "O Narcisismo das Pequenas Diferenças"; endereçando alguns questionamentos especialmente aos colegas psicanalistas, a partir da referência de um caminho que já trilhei quando enviei uma sequência de três imagens acompanhadas de ditos de Freud acerca do Narcisismo, para serem divulgadas nesse blog.

A primeira, estava representada pela imagem clássica de Narciso descrita poeticamente por um fragmento de uma música de Caetano Veloso, (...)" Narciso acha feio o q não é espelho"(...) a segunda,fazia referência à rivalidade, inveja e desprezo ao vizinho de aldeia, referenciados por Freud. A terceira abordava, literalmente, o fenômeno das rixas e ridicularizações, o que Freud chamou de “ Narcisismo das Pequenas Diferenças”.
A psicanalista Betty Fuks, autora do livro "Freud e a Cultura", conferencista convidada para abertura das Jornadas,  reporta-se a esse fenômeno esclarecendo:

                                     "Em termos "normais", o "narcisismo das pequenas diferenças" está na base
                                             da constituição do "nós" e do "outro", na fronteira que tem por função
                                             resguardar o narcisismo da unidade. Trata-se de um fenômeno que ocorre na
                                              tensão que existe entre povos vizinhos (...) entre indivíduos de estados de um
                                             mesmo país, (...) ou até mesmo dentro de uma mesma cidade(...). Ou seja, são
                                             pequenas diferenças reais que impedem que o outro seja um perfeito
                                             semelhante, o que significa que o ódio não nasce da distância, mas da
                                              proximidade. E, exatamente por que não se trata de uma diferença qualquer, é
                                             que se produz o estranhamento que detona impulsos hostis contra aqueles que
                                              estão apenas um pouco mais além do espelho".

Retomando as questões anteriores, no que diz respeito à primeira imagem, perguntaria: que na práxis analítica poderíamos achar feio, sendo considerado um outro espelho? Sobre a segunda, ainda que não habitemos duas aldeias, muitas vezes até mesmo uma mesma Instituição e como tal não olhemos com rivalidade e inveja da outra; em que momentos e por que a rivalidade e a inveja se instalariam na nossa aldeia-Instituição? Quanto à terceira, em que momento as rixas e as ridicularizações que Freud chamou de “ Narcisismo das Pequenas Diferenças", se instalariam e passariam a ganhar alguma visibilidade? Com que intenções, funções, propósitos? Em resumo: como temos lidado com as diferenças nas Instituições psicanalíticas? 

O que não é o espelho precisa, necessariamente, ser achado feio?
A rivalidade, inveja e desprezo seriam as estratégias a serem adotadas para a inibição, o combate e a destituição das diferenças? As rixas e as ridicularizações não poderiam abrir espaços para divergências mais produtivas?

Nesse momento me vem à memória duas falas que escutei a partir da definição do tema dessas Jornadas que me chamaram especialmente a atenção:  a primeira, associada diretamente a uma reação muito espontânea por parte de um colega, que quando perguntando sobre qual teria sido o tema institucional definido para 2018 e consequentemente para as Jornadas, ao escutar ser  "O Narcisismo das Pequenas Diferenças", arregalava os olhos e dizia "Corajosos nós (...)". A segunda, de uma colega que quando da realização da primeira atividade para estudo do tema institucional, quando discutíamos o eixo teórico a ser definido,  dizia temer que nos concentrássemos nos textos clássicos de Freud acerca do tema e não nos ocupássemos, efetivamente, do que se tratava naquele caso, ou seja, a manifestação do narcisismo na cultura... 

Penso que os colegas estavam certos, há mesmo que se ter coragem para olhar e falar sobre isso e estarmos atentos para não nos desviarmos do que o nosso desejo já anunciava lá atrás...


















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