quarta-feira, 20 de junho de 2018

O QUE É A PEQUENA DIFERENÇA?

 Alana Nunes Remor retomou na obra de Freud os momentos em que o fenômeno narcisismo das pequenas diferenças foi apresentado e nos trouxe sua reflexão sobre o que é a pequena diferença. 


O QUE É A PEQUENA DIFERENÇA?
Alana Nunes Remor[1]

            A fim de discutir o tema, o narcisismo das pequenas diferenças, proponho um resgate dos textos freudianos onde essa expressão aparece.
            O primeiro registro é em 1918, no texto O tabu da virgindade. Nele, Freud comenta que Crawley afirma que “cada indivíduo é separado dos demais por um tabu de isolamento pessoal e que constitui precisamente as pequenas diferenças em pessoas que, quanto ao resto, são semelhantes, que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador desenvolver essa ideia e derivar desse narcisismo das pequenas diferenças a hostilidade que em cada relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os sentimentos de companheirismo e sobrepujar o mandamento de que todos os homens devem amar ao seu próximo.” (Freud, 1918, pp.206-207).
            A expressão aparece novamente em 1921, em Psicologia das massas e análise do Euonde comenta que essa hostilidade está presente nos relacionamentos duradouros, embora seja mais difícil percebê-la, em função da repressão. Já nas relações em unidades maiores ou entre subordinados e superiores, por exemplo, essa hostilidade se mostra com mais clareza. (Freud, 1921, p.112) Isso pode ser exemplificado pela relação de certa antipatia jocosa entre os brasileiros e os argentinos ou mesmo entre catarinenses e gaúchos ou paranaenses. Ou seja, as competições que ocorrem entre vizinhos.
            Em 1930, no texto O mal-estar na Cultura, Freud retoma essa característica das comunidades com territórios adjacentes, ou seja, a competição constante entre vizinhos e diz: Dei a esse fenômeno o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicá-lo. (Freud, 1930, p. 119)
            Por fim, em 1939, Freud escreve em Moisés e o monoteísmo, aprofundando um pouco sobre o que seriam as pequenas diferenças, que essas não são definíveis, ou seja, a diferença não é visível e que é nesse caso em que a intolerância é muito mais intensa. Então, a hostilidade é muito mais forte contra as pequenas diferenças do que contra as diferenças fundamentais. (Freud, 1939, pp.104-105)
            Como podemos entender a expressão ‘pequenas diferenças’ que qualifica o narcisismo, tema do nosso estudo? 
            No texto Psicologia das massas e análise do Eu, Freud dá uma direção quando fala sobre as identificações. O mestre vienense a cita como “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (Freud, 1921, p.115) A identificação tem um papel na história primitiva do Édipo, por exemplo, o menino gostaria de ser como seu pai e tomar seu lugar em tudo; toma o pai como seu ideal. 
            O Eu, desde Freud, é consequência das identificações; e do mesmo modo, afirma que é a sede do narcisismo mais do que da consciência. Vappereau adverte que o narcisismo não é um defeito. No estádio do espelho, ocorrem duas posições do sujeito em seu corpo: o corpo no espelho como corpo do outro, ou seja, extrínseco e, por outro lado, eu sou intrínseco a meu corpo. Coordenar essas duas posições parece um ato simbólico impossível. Assim, o narcisismo é uma tensão erótica violenta necessária para praticar o simbólico (Vappereau, 2016). Para Lacan, o Eu se forma pela identificação narcísica com a imagem do semelhante – a imagem especular que lhe oferece uma ideia de inteireza e independência. Por outro lado, essa semelhança pode se tornar ameaçadora já que, o outro semelhante pode, por isso, querer tomar seu lugar. Por isso, o vizinho é quem pode colocar em perigo a autonomia e integridade do Eu. Daí que, o Eu coloca nessas semelhanças a hostilidade caracterizando-as como diferenças. 
            Em suas origens, a identificação entre o menino e a menina, parte de uma imagem totalizada que em algum momento, é gravemente quebrada por uma pequena, sutil e única diferença: os genitais. Segundo Lacan, no Seminário ...ou pior,  só se reconhecem como falantes ao rejeitarem essa distinção através de toda sorte de identificações. Há uma lógica em questão: eles não se distinguem, os adultos os distinguem, descrevendo e tratando-os pelas características de homenzinho e de mocinha, ou seja, o que ainda não são. (Lacan, 1971, p.16)
            Dessa forma, a identificação simbólica é caracterizada pela consideração de apenas um traço, é uma referência a um traço específico e único. Um exemplo emblemático é o bigode do Hitler. Na infância, o que quebra as identificações, até então baseadas nas semelhanças, é uma única pequena diferença que vai ter consequências na vida do sujeito através das formações de teorias sexuais, das identificações, das preferências, enfim, da pergunta pelo ser do sujeito.
            
Referências:
FREUD, S. “O tabu da virgindade”. In Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago, Vol. XI, pp. 206-207.
_______ . “Psicologia das massas e análise do eu”. Op. Cit. Vol. XVIII, Cap.VI. p. 112 e Cap. VII p. 115.
_______ . “O mal-estar na cultura”. Op. Cit.Vol. XXI, Cap. V. p.119.
_______ . “Moisés e o monoteísmo”. Op. Cit.Vol. XXIII, pp.104-105.
HARARI, R.“¿Por qué las pequeñas diferencias son tan grandes?” In Psicoanálisis in-mundo. Buenos Aires, Ediciones Kargieman, p. 165.
LACAN, J. “A pequena diferença” In Seminário 19 ... ou pior. Rio de Janeiro, Zahar, p.16.
VAPPEREAU, J.M. “La única construcción simbólica efectiva es el chiste” In El Telegrafo. Disponível em: https://www.eltelegrafo.com.ec/noticias/186/34/jean-michel-vappereau-la-unica-construccion-simbolica-efectiva-es-el-chiste
            




[1]Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica, graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestranda em Psicanálise na Universidad Kennedy em Buenos Aires.

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