quarta-feira, 20 de junho de 2018

O narcisismo das pequenas diferenças

Maria Cristina Carpes, Psicanalista, Mestre e doutoranda em Ciências da Linguagem do Programa de Pós Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina sentiu-se convocada por nosso Tema Institucional e produziu um escrito para compartilhar conosco. 


O narcisismo das pequenas diferenças[1]

Maria Cristina Carpes[2]

O título deste texto remete a expressão utilizada por Freud em três de seus trabalhos[3]: no O mal-estar na civilização(1974[1930]), diz que a expressão que utiliza não ajuda muito na explicação, do que quer dizer com este termo. Mas o que será que Freud quer dizer no uso desta expressão? Sem querer fazer um exercício de adivinhação, uma vez que o discurso psicanalítico fundado por Freud não se presta a isso e tem na máxima popular “Freud explica”, um autor desconhecido que, por não se fazer conhecer, nos coloca como autores deste ideal imaginário que gostaríamos que fosse verdadeiro. Se Freud explica, quem sabe ele nos explicaria (psicanalistas e sempre aspirantes a ser) a ler seus textos e entender o que ele quer dizer, e consequentemente também poderíamos explicar aos pacientes o que lhes acomete, sem falar que também, nossos analistas nos explicariam sobre os nosso mal- estares.
Ilusões à parte, mas de que explicação estamos mesmo atrás? O que nos faz perguntar, talvez aponte para nosso ponto de angústia. Nesse ponto reaparece Freud, no belíssimo texto do O tabu da virgindade, em que diz que a angústia aparece frente a situações não habituais, diante do novo, do inesperado, do misterioso - a angústia dá seu sinal.
Nos trechos em que refere à expressão “narcisismo das pequenas diferenças” nos textos Psicologia de grupo e a análise do ego(1920) e O mal-estar na civilização(1930[1929]), o autor chama a atenção para as animosidades entre os grupos/comunidades/povos que rivalizam e vivem próximos geograficamente, como nos exemplos a cerca de nós: na rivalidade entre brasileiros e argentinos, catarinenses e gaúchos, avaianos e alvinegros, kleinianos e lacanianos e entrando mais na nossa praia, entre os lacanianos encontramos diferenças que se rivalizam. Nestes detalhamentos, vamos encontrando a sensibilidade narcísica das diferenças que nos habita.
No texto Tabu da virgindade, que vem a ser o terceiro da série das Contribuições à psicologia do amor, o autor discorre sobre os tabus presentes nas sociedades primitivas sobre a virgindade da mulher. Entende que os tabus em relação à virgindade feminina, bem como, os rituais que envolvem o defloramento nestas sociedades, expressam o temor que o homem tem frente ao ato sexual com a mulher, enquanto portadora de “pequenas” diferenças que fazem uma grande diferença frente ao temor narcísico da castração enquanto falta da completude. Tais temores por estarem recalcados, seguem ativos também nas sociedades contemporâneas. São as palavras de Freud (1970 [1918], p. 184) sobre o medo que envolve o tabu:
Talvez este receio se baseie no fato de que a mulher é diferente do homem, eternamente incompreensível e misteriosa, estranha, e, portanto, aparentemente hostil. O homem teme ser enfraquecido pela mulher, contaminado pela sua feminilidade e, então, mostrar-se ele próprio incapaz. O efeito que tem o coito de descarregar tensões e causar flacidez pode ser o protótipo do que o homem teme; e a representação da influencia que a mulher adquire sobre ele através do ato sexual, a consideração que ela em decorrência do mesmo lhe exige pode justificar a ampliação desse medo.

O tabu expressa medidas organizadoras e protetivas para tentar dar conta de um perigo. O perigo que o tabu da virgindade quer evitar é a diferença sexual. Mesmo que, apareça transvestidas de outras diferenças, como nas intolerâncias sociais, raciais e religiosas que proliferam no nosso dia a dia e nos acompanham por diversas épocas. Freud chama nossa atenção, que na base das intolerâncias das pequenas diferenças entre nossos vizinhos de porta e de corpo (dentro das famílias), o que está na base, como ponto de angústia é o horror da diferença sexual.
Por que a diferença sexual tem tamanha propriedade em nos afetar? Quem sabe, porque está no corpo. Homens e mulheres são diferentes anatomicamente, por mais que a cosmetologia e os avanços tecnológicos disfarcem.
Em psicanálise sabe-se que dizer do corpo não é pouca coisa. É aí no corpo erógeno que pulsam as pulsões. Temos novamente a diferença sexual transcendendo a anatomia, melhor dizendo, pervertendo a anatomia e marcando novamente que as diferenças que importam estão na forma de obtenção do prazer no corpo. 
Lembramos, mesmo que depois caia no esquecimento, que a castração é um evento de significação simbólica, numa magnitude de ideais narcísicos. Sendo um bom leitor de Freud, Lacan retoma e toma muito a sério a dimensão da castração na constituição do sujeito do desejo na linguagem.
A diferença feminina protagoniza o temor à castração, como um operador que nos constitui como sujeitos psíquicos pela falta que a diferença revela. Somos diferentes, sendo diferente algo falta em mim que o outro tem, ou se na diferença a falta aparece no outro, também pode acontecer comigo. É nestas pequenas diferenças, já que somos todos mortais e faltantes, que ficam evidenciadas nas proximidades, nos laços sociais, nas rivalidades, nos amores, nos ódios e que aparecem para que não se saiba que a diferença nos torna semelhantes na falta. A sociedade ocidental privilegia a presentificação da imagem, onde o falo, como um totem, traz à ilusão que a imagem é a verdade.
Eu– como instância narcísica, portadora de um narcisismo secundário e meu vizinho – o outro,  somos castrados, mas cada um na sua maluquice singular de tentar encobrir e esquecer disso. Para tal, brigamos, rivalizamos, digladiamos com a ilusão que assim, não veremos que as diferenças que portamos, por pequenas que sejam nos fazem desejar o outro, para montar uma fantasia possível de satisfação. 

REFERÊNCIAS

FREUD, S. O tabu da virgindade (Contribuições à psicologia do amor III) (1918). In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XI. Rio de Janeiro: Imago, 1970.
______. Psicologia de grupo e a análise do ego. (1921). In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 
______. O mal-estar na civilização (1930). In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974.





[1]Texto elaborado para os estudos e atividades preparatórias para as Jornadas da Maiêutica 2018.
[2]Psicanalista. Mestre e doutoranda em Ciências da Linguagem do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina.
[3]Os trabalhos referidos são: O tabu da Virgindade (Contribuições à psicologia do amor III), (1918 [1917]); Psicologia de grupo e a análise do ego (1920) e o O mal-estar na civilização (1930[1929]).

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