quarta-feira, 18 de julho de 2018

A psicanálise em situações sociais críticas


Emília Estivalet Broide, Psicanalista, membro da APPOA , Mestre em Saúde Pública, Doutora em Psicologia Social, Integrante do Laboratório de Psicanálise e Sociedade (USP); e Jorge Broide, Psicanalista, membro da APPOA, Psicólogo, Professor e Analista Institucional, Mestre e Doutor em Psicologia Social; participaram de nossas reflexões dividindo um dos capítulos do livro escrito por eles “A psicanálise em situações sociais críticas – metodologia clínica e intervenções” (2016 p. 43-47)
 


Freud e o grupo enquanto dispositivo de alienação ou transformação: massa, grupo e sujeito


A leitura dos textos sociais de Freud nos abre o caminho para a compreensão do que entendemos como massa, como grupo, e a questão do sujeito nessa relação.

Em “Totem e tabu”, Freud nos traz a questão da organização social pautada pela Horda Primitiva. O chefe da horda, o macho mais forte, é o beneficiário de todo o gozo. Tem o poder sobre todas as mulheres e bens produzidos pelo grupo. Sua substituição ocorria sempre através de um crime que era uma repetição. Surge um macho mais jovem e mais forte que mata o antigo chefe da horda e, com isso, se apropria do poder do gozo. Em certo momento, os irmãos realizam um pacto que possibilita que a repetição não ocorra. Todos devem fazer uma renúncia a uma parte importante do gozo, onde todos e o novo chefe têm seus poderes limitados. É assim que surge a Lei, como diz Lacan, com a função de ordenar o gozo. A Lei surge, portanto, da supressão de uma parte regredida do sujeito que deseja a realização total e imediata de seu desejo. Para que isso ocorra, é necessária a constituição de um resto, bem como de uma clivagem que se expressa no Totem, no Banquete Totêmico. O banquete totêmico é, portanto, a forma de realização do gozo proibido na constituição da lei e da clivagem a que todos devem submeter-se. Assim, com Freud, dizemos que, para que se crie a Lei, é necessária uma clivagem do gozo, o que constitui um resto que, como sabemos, pulsa, faz parte do Inconsciente.

Em “O mal-estar na civilização”, Freud, seguindo o mesmo raciocínio, coloca que o ser humano deve renunciar à realização imediata de seu desejo para que seja possível a vida na cultura ou civilização. O princípio do prazer deve ser transformado em princípio da realidade ou, dizendo de outra forma, o processo primário deve ser transformado, pelo trabalho humano de elaboração, em processo secundário. É a renúncia do puro prazer que constitui o humano. É daí que, segundo ele, surge novamente a Lei, o reconhecimento do outro, a arte, ou seja, a possibilidade de transformação da natureza, o trabalho que constitui o humano. Novamente, temos um resto, clivado do sujeito, que permanece pulsando no Inconsciente e que surge em nosso cotidiano e em todos os laços enquanto mal-estar.

Em “Psicologia das massas e análise do ego”, Freud nos apresenta a força da hipnose no movimento de massas. A hipnose, neste caso, a transferência com o líder, está calcada na experiência infantil familiar: o líder do exército, da igreja, ou de outras instituições convoca o infantil do sujeito na relação transferencial, fazendo com que o mesmo o idealize e o siga para sentir-se amado e protegido. Para tanto, necessita ser massa, ser o desejo do grande Outro. A transferência com o líder está ancorada, portanto, no resto que está clivado no sujeito e constitui o infantil, o gozo, o mal-estar: o líder ocupa o lugar paterno que promete a resolução do desamparo através de um ego puro prazer que goza sem limites e que surge messiânico na transferência de massa, onde o sujeito se aliena e se entrega. Freud contrapõe nesse texto também a massa infantilizada àquela que se organiza para as grandes transformações da humanidade, tal como a que estruturou uma nova vida através da Revolução Francesa.

No final da vida, Freud (1939) escreve um de seus mais belos textos, “Moisés e o monoteísmo”. Apresenta Moisés como um general de altíssimo nível, da corte do Faraó Akhenaton, que havia instituído o deus único, Rá, o deus do sol. Com isso, ele destitui a casta de sacerdotes, mas estes fazem uma contra-ofensiva e o matam. A Moisés, leal a Akhenaton, só resta a morte ou a fuga. Ele faz então um pacto com os hebreus para saírem do Egito, com a condição de que se convertam a um deus único, não mais Rá, e sim um passo além, um deus sem forma, pura palavra, puro pensamento. Para sair da adoração da imagem é necessário, portanto, uma renúncia e uma satisfação imediata. Novamente, é o trabalho do princípio da realidade e o processo secundário. O resto, segundo Freud, apresenta-se no texto de duas formas: no bezerro de ouro e no assassinato do próprio Moisés, causado pelo mal-estar, ódio, conflito, que havia ficado no resto clivado para que fosse possível o enorme avanço intelectual que significava o deus único e o pensamento abstrato. Novamente, temos uma luta entre uma massa indiferenciada e um grupo que constrói uma nova possibilidade humana com o pensamento abstrato: a civilização judaico/cristã.

              Nosso trabalho de psicanalistas e analistas institucionais, como dizíamos antes, é apostar na vida operando naquilo que é resto/massa para que o sujeito e o grupo ganhem uma hegemonia cada vez maior. Nos grupos e instituições, muitas vezes essa alternância apresenta-se de forma muito rápida, quase simultânea: de um lado, o resto que emerge enquanto bezerro de ouro, mal-estar, violência, gozo desenfreado, a tentativa da supressão da Lei e, de outro, o desejo de mudança e saída da alienação, o surgimento do sujeito no grupo, na tarefa.

          É importante nesse momento uma referência a Marx. Este coloca que o homem se torna homem quando pode transformar a natureza junto com o outro. É isso que entendemos enquanto trabalho, e fica claro que, para que haja o trabalho, sempre haverá o resto, clivado e negado, que causa o mal-estar e que se apresenta enquanto luta de classes e mais valia no modo de produção capitalista. O sentido do trabalho é a possibilidade de transformar o mundo de forma coletiva, e Pichon-Rivière (1986) já tinha isso claro quando formulou o conceito de tarefa. Um grupo, uma instituição, só possui um sentido se tiver uma tarefa coletiva para a transformação social que permita que o sujeito humano avance em sua luta contra o desamparo e contra o gozo de um em detrimento da vida dos outros.

Por conseguinte, é a partir dos textos de Freud que podemos entender que, para a construção da cultura e do trabalho, sempre há um resto. Nos grupos e nas instituições o resto surge com diferentes nomes e em várias formas, sempre na transferência. Podemos dizer que a pré-tarefa que se contrapõe à tarefa, conforme colocada por Pichon, é aquilo que surge do resto. É também o que Bleger nos mostra como a interação sincrética e a simbiose nos grupos, famílias e casais. É ainda na mesma direção que Bion formula os supostos básicos e o grupo de trabalho. Há ainda a crítica de Lacan, quando diz que estes operam em espelho. O que trabalha em espelho, sob nosso ponto de vista, são os restos, que formam o Imaginário, em conflito com o Simbólico, diante do Real, e que constituem massa na transferência grupal e com o coordenador.  


FREUD, S. (1913[1912-13]). Totem y Tabu. In: Obras complestas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V. XVII

_____. (1921). Psicologia da las masas y analisis del yo. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V. XVIII.

_____. (1930). El malestar em la cultura. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V. XXI.

_____. (1939[1934-38]). Moisés y la religión monoteísta. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V. XXIII.

PICHON-RIVIÈRE, E. P., QUIROGA, A. P. Del psicoanálisis a la psicologia social. Buenos Aires: Nueva Visión, 1986.


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