quarta-feira, 23 de maio de 2018

Psicanálise e Intervenções Sociais


Marcela de Andrade Gomes, Psicanalista, Professora Doutora em Psicologia, Coordenadora do grupo "Psicologia, Políticas Públicas e Direitos Humanos" e Vice-Coordenadora do Curso de Psicologia na UFSC, dividiu conosco sua concepção  sobre o tema "o narcisismo das pequenas diferenças" a partir de seus estudos e práxis desenvolvidos no âmbito das intervenções sociais.

A psicanálise nas intervenções sociais


Imagem do Projeto "Women are Heroes"do artista Francês JR na favela do Rio de Janeiro em 2011



Por ter trilhado, desde a minha graduação, pelas chamadas “psicologia clínica” e “psicologia social” algumas questões sempre se fizeram presentes e culminaram naquilo que hoje, após formação e percurso em psicanálise, tenho denominado de “psicanálise nas intervenções sociais”. O que se faz e se pretende nas chamadas áreas “clínica” e  “social”? O que as aproximam e o que as divergem?
A psicanálise foi criada e pensada a partir da lógica do “um a um”. E quando elaborada por Freud e suas pacientes, foi extremamente revolucionária pois rompia com o paradigma organicista biomédico, colocava em cena o tabu que a sociedade havia tornado a sexualidade  e conferia ao corpo das mulheres um lugar de desejo onde, até então, o patriarcado só lhe permitia a reprodução. 
Mais de um século se passou e muitos destes traços culturais permanecem na ordem vigente: ainda vivemos sob a hegemonia do paradigma organicista (vejamos o que está subjacente ao projeto de lei apelidado de “Ato Médico”), a sexualidade ainda é um complexo tabu para a nossa sociedade (um exemplo contemporâneo é o desafio que as escolas vêm passando para se adentrarem no debate sobre corpos, gêneros e sexualidades) e, infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade extremamente machista (basta olharmos as estatísticas sobre violência de gênero e sexual contra as mulheres). Ou seja, a psicanálise continua sendo um arcabouço teórico subversivo a modelos hegemônicos que estruturam o emaranhado das relações de poder presente no nosso laço social contemporâneo. Entretanto, assim como muitas coisas permanecem muito semelhante à sociedade vitoriana de Freud, outras tantas se modificaram intensamente, instaurando novas formas de se relacionar com o outro/Outro. 
A chegada maciça das tecnologias da comunicação e informação, a inserção da mulher no mercado de trabalho, as novas configurações familiares, entre tantos outros elementos, têm produzido novas formas de laço social, de sujeitos e sintomas. Contextualizando para a nossa realidade brasileira, bastante diferente do contexto europeu onde a psicanálise foi criada, precisamos incluir, na nossa forma de fazer psicanálise, um elemento histórico que são as profundas desigualdades sociais vividas no Brasil desde a colonização. 
Pensar o conceito Freudiano “o narcisismo das pequenas diferenças” nos coloca em questão o alcance da psicanálise que direciona sua escuta para as diferenças sociais que se inscrevem nos corpos produzindo hierarquias e inferiorizações em determinados grupos devido à sua classe social, raça, etnia e gênero. Os chamados “marcadores sociais”, como definem alguns autores, produzem grandes diferenças nas vidas das pessoas, inclusive fazendo alguns possuírem mais direito de vida que outros, tornando algumas vidas mais passíveis de lutos do que outras (conforme a última pesquisa do Mapa da Violência, a cada 10 pessoas assassinadas pela polícia, 8 são pessoas negras e moradoras de favelas). 
Este cenário nos convoca, enquanto psicanalistas, a assumir uma postura ética e política: atuar sob a égide da ética psicanalítica orientada por uma luta política que busca construir relações nas quais as diferenças não apareçam como ameaças, mas como passíveis de convivência. Uma psicanálise que, para além de debater o narcisismo das pequenas diferenças, esteja atenta ao sofrimento psíquico gerado pela categorização, patologização e hierarquização das diferenças - frutos da ideologia capitalista-neoliberal. Uma atuação política que tenha como norte a superação das desigualdades sociais pensada a partir da escuta clínica às pessoas que vivem em contextos de vulnerabilidades e desamparo social. 
Penso que o caráter subversivo que a psicanálise pode provocar hoje no atual sistema vigente é de incidir, enquanto saber e fazer, nos contextos institucionais e comunitários para dar cena às subjetividades invisibilizadas, oferecendo escuta a sujeitos que possuem pouco ou nenhum espaço para falarem de seus sofrimentos e traumas. Lembro-me de uma mãe que chorou intensamente quando apenas falei “quero saber como você está”- eu sabia que os dois filhos haviam sido assassinados no final de semana e suas cabeças colocadas na porta de sua casa- e ela, tentando sufocar o choro, dizia-me: “não posso falar sobre isso, ainda tenho meu caçula vivo!” 
Não me parece pouca coisa, levar a sujeitos, tão violados em sua cidadania, uma escuta que não os culpabiliza, tampouco os vitimiza, mas que, de algum modo, os coloca em novas interrogações, deslocamentos, possibilitando a estes sujeitos que se movimentem, saiam do “monossentido fixado de seus significantes e abram-se à polissemia dos sentidos e da vida. 
Uma vez, um adolescente que frequentava um grupo que eu desenvolvia em uma comunidade em Florianópolis, bastante vulnerável e atravessada pelas violências (Estado, facções, tráfico, milícias...), diante de minha questão sobre o que desejava para o futuro,  respondeu: “aqui num tem querer, nosso destino é sempre o CC”. Intrigada com este significante, perguntei a ele o que queria dizer com isso. Ele me respondeu: “cadeia ou caixão”.  
Parece-me que a escuta, possibilita dar/devolver o estatuto de sujeito àqueles que são negados, desqualificados ou até mesmo mortos pelo laço social e esta é uma importante contribuição que nós psicanalistas podemos ofertar no trabalho junto às políticas públicas e comunidades. Trata-se de uma atuação que visa permitir que aqueles que foram fixados pela sociedade como “louco”, “delinquente”, “preguiçoso”, “fracassado”, “traficante”, “bandido” e tantos outros invólucros ideologicamente produzidos e formatadores de subjetividades possam ter um espaço para desconstrução ou reconstrução, ou o que conseguirem fazer com isto... que sejam escutados e que se dê lugar ao choro, à palavra e a novos deslizamentos na cadeia de significantes que permitam o sujeito vislumbrar outras possibilidades para além do “CC”, parafraseando aquele adolescente.  
Diferente do trabalho de assistentes sociais, não resolveremos o problema da pobreza; diferente do advogado, não diremos qual é a melhor decisão a ser tomada; diferente do juiz, não iremos avaliar ou julgar uma ação. Nossa atuação se difere das demais pois realizamos uma operação simbólica que, justamente por atuar a partir do não-saber, abre a possibilidade da emergência do sujeito, com seus paradoxos, sintomas e fantasma. 
Assim, tenho defendido entre muitos pares, que nós psicanalistas podemos construir dispositivos clínicos e políticos nas instituições, nas políticas públicas e  nas comunidades. A clínica não mais entendida como sinônimo de consultório, e a política completamente desvinculada da questão partidária. Um dispositivo significa algo que desencadeia a fala -  a clínica como uma forma de escutar e manejar aquilo que é possível ser escutado; e a política, como uma luta por uma sociedade menos excludente e opressora em relação a determinadas “diferenças”. 
Há muito ainda para ser pensado e trabalhado a partir disso, já que não se pode deixar de questionar e contemporaneizar a psicanálise. E que bom ver Instituições envolvidas com o estudo de um tema que atravessa diretamente questões tão amplas, ver psicanalistas comprometidos a seguir reinventando o que não pode ser estático.  


Referências Bibliográficas:

ALTOE, Sônia., LIMA, Marcia Mello.(2005). Psicanálise, clínica e instituição. Ambiciosos: RJ.

BROIDE, Jorge; BROIDE, Emília Estivalet. O atendimento em situações sociais críticas: a construção de um método baseado nas ancoragens do sujeito. In: A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Escuta, 2015.   

BUTLER, Judith. (2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 

CHAUI, Marilena de Souza (2016). Ideologia e educação. Educação e Pesquisa, vol. 42, n.1, p.245-257.

BRAH, Avtar. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, 26, 329-376.

ELIA, Luciano (2011). Inconsciente e cidade. Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre: APPOA. 

FIGUEIREDO, Ana Cristina (2011). Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no cotidiano. Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre: APPOA. 

ROSA, Miriam Debieux., VICENTIN, Maria Cristina. (2010). Os intratáveis: o eixo do adolescente do laço social pelas noções de periculosidade e irrecuperabilidade. Revista de Psicologia Política, vol. 10, n. 19, 1-18.

SUSIN, Luciane; POLI, Maria Cristina. O singular na assistência social: do usuário ao sujeito. In: CRUZ, L.R & GUARESCHI, N. (Orgs.), O psicólogo e as políticas públicas de assistência social. Petrópolis:Vozes, 2012.



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