domingo, 9 de setembro de 2018

Narciso e Nêmesis: o ódio como paixão pelas faltas de Eco

Pedro Heliodoro Tavares, Psicanalista, Doutor em Psicanálise e Psicopatologia na Universidade Paris VII na França e em Literatura na UFSC. Após anos atuando como professor e coordenador em cursos de Psicologia foi professor da Área de Alemão da FFLCH na USP de 2011 até fevereiro deste ano, e no momento atua na área de Germanística  e na Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC. Dirige com Gilson Iannini a coleção "Obras Incompletas de Sigmund Freud" da Editora Autêntica, edição da qual também é o revisor e coordenador de tradução. Sobre o tema das traduções de Freud, realizou um Pós-Doutorado na PGET-UFSC  e mais recentemente outro no ZFL em Berlim-Alemanha. Suas publicações abordam fundamentalmente as relações entre a clínica psicanalítica e o campo das Letras. E é com esse percurso que seu olhar sobre o tema "Narcisismo das Pequenas Diferenças" apresenta-se para nós cuidadosamente trabalho palavra por palavra, letra por letra. 

La Grande Fortune (ou Némesis), de Albrecht Dürer (1501-1502)
Museu de l’Ermitage, Rússia. 



“... mas é que Narciso acha feio o que não é espelho”
Caetano Veloso

Da língua que Lacan nomeia ao início do Seminário 22 (RSI) como particularmente capaz de dar conta da imbecilidade tomamos de Plauto a famosa sentença: Nomen omen est. Quer dizer, “o nome é um presságio”. Sabemos que os antigos costumavam produzir sua cartografia imaginária a partir de nomes que veiculavam certos conceitos pelos destinos pessoais de cada uma dessas figuras míticas antropomórficas. Disso soube se apropriar a psicanálise desde seus primórdios, usando de nomes míticos como o de Édipo para tratar das vicissitudes humanas. 
N’AsMetamorfosesde Ovídio, cuja recente tradução em edição bilíngue da editora da UFSC organizada pelo grande latinista Mauri Furlan entre outros recomendo fortemente, aparecem como personagens fundantes alguns dos mais importantes conceitos analíticos: Eros (Amor), Psiquê e, claro, Narciso. Narciso ou Ναρκισσος (Narquíssos) em sua grafia e pronúncia helênicas traz em seu nome o destino do “entorpecimento”, da narcose, palavra que bem conhecemos advinda de νάρκη(nárque - dormência). Não à toa o conceito de narcisismo parece aportar essa incômoda lembrança de que a busca pela identidade a partir da autoimagem ortopédica como um todo belo e, logo, bom (kalós kai ágathos) nos põe tão aparvalhados quanto a figura mítica. 
Roberto Harari nos aponta para o curioso fato de que o autor que funda a psicanálise nos produtos de seu próprio sono, seus sonhos, operou com na metamorfose de seu nome o mesmo que fez em língua alemã com o de Narciso. Do Narzisismus, conceito de Havelock Ellis, e do nome próprio recebido do pai, Sigismund, Freud amputa as mesmas letras: “is”. Um corte que no seu nome rompe com a dimensão especular que ocupa a terceira letra, o “g”: 
 [ S I ← (G) → I S ]
Sim, todo grande conquistador sabe que só se obtém certas dádivas pagando com a carne ou com o verbo que nos constituem como imagem idêntica a nós mesmo. Há sempre que se pagar com uma libra de carne ou de letra. 
O trágico destino de Narciso, sabemos, é selado por não corresponder aos encantos da apaixonada ninfa Eco (Ηχώ), a Oréade que até então tinha também a peculiaridade de ser apaixonada de si mesma, mas não pelo aspecto físico, senão pela própria voz, sendo sempre a que tinha a “última palavra” nas contendas. Foi posteriormente, aliás, castigada por Hera, condenada a sempre repetir as últimas palavras de quem com ela ia ter em discussões. Nessas Jornadas de Maiêutica, em que também se discutirá o olhar e a voz (ver lançamento de livro previsto) como objetos pulsionais, cabe lembrar essas “pequenas diferenças” desses dois primevos autoapaixonados, autorreferenciados pela própria imagem ou pela própria voz. 
Ora, o que pode ser mais perigoso do que o ódio provocado por um amor não correspondido. Outra grande lição a ser buscada na mitologia antiga na qual abundam tais exemplos, como fora igualmente o de Eros (Amor, para os romanos) e Psiquê.  Essa última é condenada a infindáveis trabalhos por Afrodite que a quer ver distante do seu objeto de rivalidade: Amor-Eros. 
Desde Freud sabemos que, como afeto, o ódio é o mais antigo, pois somente quando o objeto ousa nos por em falta, percebemos nossa insuficiência: do ódio nasce a dinâmica objetal e o mesmo amor que ele, ao fim, impossibilita. Vivemos tempos que exacerbadamente dão testemunho desse ódio nascido dos narcisismos feridos com o quase onipresente recrudescimento das buscas por reuniões de grupos em torno de uma alegada identidade, sempre ancorada na suposta diferença da alteridade que os ameaça de seguirem sendo iguais a si mesmos. 
Aqui cabe mencionar algo trazido por Lacan em seu segundo seminário sobre o Eu, fundamentalmente, dedicado a tantas advertências quanto ao fascínio egóico. Trata-se da homofonia em francês entre as palavras egos(plural de ego, com pronúncia oxítona) e égaux(iguais). Facilmente se vê daí a apreensão de grupos nacionais ou étnicos da palavra égalité, originária do tríptico revolucionário francês, servir mais do que ao combate à desigualdade, cada vez mais ao propósito da afirmação de determinada identidadeque nega (forcluindo, denegando ou recalcando) o direito às diferençasentre os falantes que só têm em comum entre si, paradoxalmente, o fato de uma existência singular, sem par ou modelo instrucionário.
Sabemos que grandes organizações coletivas e eficazes no entorpecimento coletivo das singularidades costumam ser fundadas por um pai-S1, logo, uma alteridade excluída da cadeia: Moisés, o egípcio líder dos judeus; Hitler o austríaco líder dos alemães; Jesus, o judeu líder dos cristãos europeus; Bonaparte ítalo-córsego líder dos franceses etc. Tais agrupamentos em torno de um projeto em alguma medida supremacista, também precisam de outro tipo de alteridade para sua coesão e engajamento, precisam da identificação do diferente-ameaçador de sua identidade, um grupo fadado a um dos seguintes destinos: conversão-cura, exílio ou extermínio. Sempre uma justiça que opera antes com a espada que com a balança. Mas, certamente, não basta ser alien, diferente, já que, como lemos no célebre ensaio de 1919, só inquieta a diferença naquilo que é potencialmente familiar. Não propriamente o estranho-estrangeiro (Fremd), mas o in-familiar (Unheimlich), a inquietante estranheza familiar, que nos toca por ser parte constituinte e encoberta de nosso psiquismo, podendo aflorar malgrado os esforços egoicos por seu silenciamento. Retomando a citação de Scheling feita ali por Freud: “Chama-se unheimlicha tudo o que deveria permanecer em segredo, escondido, mas que veio à tona”.
Curioso que muitas vezes o triste destino dos atacados seja uma reação de comparável alienação massificadora, agarrando-se, diante da perseguição opressora, a frágeis construções identitárias outorgadas justamente pelo outro pausteurizador, como novas formas de massificação do singular (a igualdade na diferença). Seja aí no que tange ao pertencimento nacional, às identificações e objetos sexuais, à relação com a fé ou o sentimento mágico. Algo como a reversão dos rótulos pejorativos em razão de orgulho afirmativo identitário no caso das denominações gaúcho ou mané, a “marcha das vadias”, o orgulho gay(rapazes alegres, frívolos) o “protestantismo” luterano etc. Em decorrência disso, também, assistimos à tentativa de agrupamentos que geram novas listas categorizantes como a sequência representada pelas iniciais de LGBTTI... as quais, por sua vez, reproduzem em grande medida a tentativa dos próprios agrupamentos excludentes pela via da patologização ou criminalização da singularidade do sexual.
Pois bem, importante atentarmos para o fato de que o triste fim de narciso em suas diferentes versões - definhando diante do encantamento com seu reflexo no lago, ou mergulhando e se afogando na busca pelo encontro com sua imagem projetada nas águas (águas da loucura?) – é fruto do encantamento de Nêmesis, aquela cujo nome nos diz que “distribui” (νέμω-némo) os destinos como a grande vingadora dos deuses. Ela é quem intercede a pedido da rejeitada Eco. Curioso destino ganhou o nome Nêmesis em termos de valor semântico ao longo do tempo, sendo hoje inclusive empregado para designar o “rival ameaçador” ou “aquele que exige uma forma de retaliação”. Já em Homero tinha o nome claro valor de “desdém” ou “indignação” e em Aristóteles em sua Ética a Nicômanoo de “vingança” ou “punição”. Se de fato a vida imita o mito, nada mais certo para a ameaça de nossa fortuna, que abdicarmos da eudaimonia(εὐδαιμονία:estar em paz com o próprio daimon) - artifício próximo ao do Sinthome como possível fim-de-análise nos termos de outrora - em nome da “demonização” (δαιμον) do outro em suas pequenas diferenças.
            

Nenhum comentário:

Postar um comentário