terça-feira, 29 de maio de 2018

Freud e a Cultura

Betty Bernardo Fuks, Psicanalista, Doutora Professora da Universidade Veiga de Almeida no Rio de Janeiro, é conferencista confirmada em nossas Jornadas 2018. 


Autora de livros como Freud e a Cultura, 100 anos de Totem e Tabu, Freud e a Judeidade: a vocação do exílio, O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, entre outros. E de artigos como Segregação Constituva do Outro em Tempos de Totalitarismo, A Psicanálise nos Tempos da Auto-estima Delirante, Por que a Crueldade? e A Cor da Carne;  tem trajetória tão produtiva acerca do tema que nos convoca, que é difícil escolher apenas um texto seu para compartilhar.


Neste momento, partimos de um trecho de "Freud e a Cultura" (2003, P. 48 e 49), que nos instigou a conhecer ainda mais de seu trabalho:



   "Este fenômeno grupal de amor entre si e ódio ao outro, Freud denominou de narcisismo das pequenas diferenças. O termo narcisismo entra para o vocabulário psicanalítico para designar o modo como o sujeito encontra em si mesmo um objeto de gozo sexual. Quando aplicado às massas o conceito designa a insuflação amorosa da identidade coletiva obtida. Já o termo "pequenas diferenças" foi cunhado para descrever o processo pelo qual, sob a égide do ideal de supremacia, a intolerância ao outro é exibida muito mais intensamente contra as diferenças próximas do que contra as fundamentais. 
   Em termos "normais", o "narcisismo das pequenas diferenças" está na base da constituição do "nós"e do "outro", na fronteira que tem por função resguardar o narcisismo da unidade. Trata-se de um fenômeno que ocorre na tensão que existe entre povos vizinhos (por exemplo, as rixas entre brasileiros e argentinos), entre indivíduos de estados diferentes de um mesmo país (entre cariocas e paulistas), ou até mesmo dentro de uma mesma cidade (entre a zona sul e a zona norte). Ou seja, são pequenas diferenças reais que impedem que o outro seja um perfeito semelhante, o que significa que o ódio não nasce da distância, mas da proximidade. E, exatamente porque não se trata de uma diferença qualquer, é que se produz o estranhamento que detona os impulsos hostis contra aqueles que estão apenas um pouco mais além do espelho
   Levando o fenômeno do narcisismo das pequenas diferenças ao paroxismo, desembocamos na segregação e no racismo, tal como os definem a psicanálise: a repulsa do sujeito ao que lhe é mais íntimo é tomado pelo eu/massa como objeto externo, a quem se endereça o ódio: o estrangeiro. Esse potencial de exclusão, situado para além de uma diferenciação entre o "eu" e o "outro" visa, justamente, toda a eliminação da diferença. O horror ao não-familiar tornou-se na modernidade, uma arma política do ideal de normalização da sociedade. 
   No contexto dessa interpretação, o discurso de Hitler é exemplar, pois permite perceber com clareza o que Freud compreendia como pequena diferença: "O judeu habita em nós; porém, é mais fácil combatê-lo sob sua forma corporal do que sob a forma de um demônio invisível". Essa fantasia violenta e homicida é um exemplo preciso de como, em última instância, a manipulação pura e simples do ódio se serve da dimensão agressiva do sujeito quando face a face com a inquietante estranheza do outro, aquilo que lhe é a um só tempo o mais íntimo e o mais exterior."


quarta-feira, 23 de maio de 2018

Três versões do Narcisismo das Pequenas Diferenças

Conversamos com Luiz Moreno Guimarães Reino (Pesquisador em Psicanálise, Psicólogo e graduando em Letras Clássicas) e Paulo César Endo (Psicanalista e Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP) que se debruçaram sobre o tema e desenvolveram o texto "Três Versões do Narcisismo das Pequenas Diferenças", o qual dividiram conosco.


Da diferença sexual à pequena diferença
Comecemos pela forma privilegiada do início de análise, isto é, com um inquietante estranhamento ali, onde em geral existe um consenso. Pensemos nos termos que compõem a expressão narcisismo das pequenas diferenças; "vamos adotar uma atitude ingênua diante dela, como se a ouvíssemos pela primeira vez" (FREUD, 1930/2010, p. 73).

Estranha composição, o narcisismo das pequenas diferenças parece ser uma construção antitética. Freud (1910/2006) dava grande valor aos estudos linguísticos de Abel (1884) sobre o léxico egípcio, os quais consideravam que as palavras primitivas tinham uma origem antitética. Ou seja, na origem, havia antíteses, uma palavra tinha dois significados contrapostos ou a própria palavra trazia a marca dessa oposição. Por exemplo, no caso mais impressionante, em que colocavam lado a lado termos contrários - como velhojovem, unirseparar, foradentro -, reunindo assim em sua composição os opostos entre si, apesar de, semanticamente, só focar um dos termos. Freud já havia chegado a algo semelhante ao estudar os sonhos que "unem os opostos em uma unidade ou os figura em idêntico elemento" (1900 citado pelo próprio Freud, 1910/2006, p. 147). A princípio, o narcisismo das pequenas diferenças parece guardar certa semelhança com esse tipo de construção antitética (ou onírica), pois junta em uma mesma expressão termos opostos: narcisismo e diferença.


Há aqui, no entanto, um risco, pois, ao opor narcisismo e diferença, não se trata de repetir ad nauseam os clichêsviva a diferença, do respeito ao próximo (todas variações comerciais do mandamento religioso amar o próximo como a ti mesmo), tão comuns hoje em dia; este fenômeno denominado de "multiculturalismo" (ZIZEK, 2008) é um efeito de massa no qual a condição para que a diferença do outro seja reconhecida é a de que ela perca sua alteridade. Não se trata disso. Na verdade, a aceitação imediata da alteridade é metapsicologicamente impossível. Há uma série de obstáculos que se opõem ao reconhecimento do outro. Nesse sentido e antes, a questão que devemos responder é por que a alteridade é vivida como uma ameaça? E uma resposta possível está nessa oposição entre narcisismo e diferença. 


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Psicanálise e Intervenções Sociais


Marcela de Andrade Gomes, Psicanalista, Professora Doutora em Psicologia, Coordenadora do grupo "Psicologia, Políticas Públicas e Direitos Humanos" e Vice-Coordenadora do Curso de Psicologia na UFSC, dividiu conosco sua concepção  sobre o tema "o narcisismo das pequenas diferenças" a partir de seus estudos e práxis desenvolvidos no âmbito das intervenções sociais.

A psicanálise nas intervenções sociais


Imagem do Projeto "Women are Heroes"do artista Francês JR na favela do Rio de Janeiro em 2011



Por ter trilhado, desde a minha graduação, pelas chamadas “psicologia clínica” e “psicologia social” algumas questões sempre se fizeram presentes e culminaram naquilo que hoje, após formação e percurso em psicanálise, tenho denominado de “psicanálise nas intervenções sociais”. O que se faz e se pretende nas chamadas áreas “clínica” e  “social”? O que as aproximam e o que as divergem?
A psicanálise foi criada e pensada a partir da lógica do “um a um”. E quando elaborada por Freud e suas pacientes, foi extremamente revolucionária pois rompia com o paradigma organicista biomédico, colocava em cena o tabu que a sociedade havia tornado a sexualidade  e conferia ao corpo das mulheres um lugar de desejo onde, até então, o patriarcado só lhe permitia a reprodução. 
Mais de um século se passou e muitos destes traços culturais permanecem na ordem vigente: ainda vivemos sob a hegemonia do paradigma organicista (vejamos o que está subjacente ao projeto de lei apelidado de “Ato Médico”), a sexualidade ainda é um complexo tabu para a nossa sociedade (um exemplo contemporâneo é o desafio que as escolas vêm passando para se adentrarem no debate sobre corpos, gêneros e sexualidades) e, infelizmente, ainda vivemos em uma sociedade extremamente machista (basta olharmos as estatísticas sobre violência de gênero e sexual contra as mulheres). Ou seja, a psicanálise continua sendo um arcabouço teórico subversivo a modelos hegemônicos que estruturam o emaranhado das relações de poder presente no nosso laço social contemporâneo. Entretanto, assim como muitas coisas permanecem muito semelhante à sociedade vitoriana de Freud, outras tantas se modificaram intensamente, instaurando novas formas de se relacionar com o outro/Outro. 
A chegada maciça das tecnologias da comunicação e informação, a inserção da mulher no mercado de trabalho, as novas configurações familiares, entre tantos outros elementos, têm produzido novas formas de laço social, de sujeitos e sintomas. Contextualizando para a nossa realidade brasileira, bastante diferente do contexto europeu onde a psicanálise foi criada, precisamos incluir, na nossa forma de fazer psicanálise, um elemento histórico que são as profundas desigualdades sociais vividas no Brasil desde a colonização. 
Pensar o conceito Freudiano “o narcisismo das pequenas diferenças” nos coloca em questão o alcance da psicanálise que direciona sua escuta para as diferenças sociais que se inscrevem nos corpos produzindo hierarquias e inferiorizações em determinados grupos devido à sua classe social, raça, etnia e gênero. Os chamados “marcadores sociais”, como definem alguns autores, produzem grandes diferenças nas vidas das pessoas, inclusive fazendo alguns possuírem mais direito de vida que outros, tornando algumas vidas mais passíveis de lutos do que outras (conforme a última pesquisa do Mapa da Violência, a cada 10 pessoas assassinadas pela polícia, 8 são pessoas negras e moradoras de favelas). 
Este cenário nos convoca, enquanto psicanalistas, a assumir uma postura ética e política: atuar sob a égide da ética psicanalítica orientada por uma luta política que busca construir relações nas quais as diferenças não apareçam como ameaças, mas como passíveis de convivência. Uma psicanálise que, para além de debater o narcisismo das pequenas diferenças, esteja atenta ao sofrimento psíquico gerado pela categorização, patologização e hierarquização das diferenças - frutos da ideologia capitalista-neoliberal. Uma atuação política que tenha como norte a superação das desigualdades sociais pensada a partir da escuta clínica às pessoas que vivem em contextos de vulnerabilidades e desamparo social. 
Penso que o caráter subversivo que a psicanálise pode provocar hoje no atual sistema vigente é de incidir, enquanto saber e fazer, nos contextos institucionais e comunitários para dar cena às subjetividades invisibilizadas, oferecendo escuta a sujeitos que possuem pouco ou nenhum espaço para falarem de seus sofrimentos e traumas. Lembro-me de uma mãe que chorou intensamente quando apenas falei “quero saber como você está”- eu sabia que os dois filhos haviam sido assassinados no final de semana e suas cabeças colocadas na porta de sua casa- e ela, tentando sufocar o choro, dizia-me: “não posso falar sobre isso, ainda tenho meu caçula vivo!” 
Não me parece pouca coisa, levar a sujeitos, tão violados em sua cidadania, uma escuta que não os culpabiliza, tampouco os vitimiza, mas que, de algum modo, os coloca em novas interrogações, deslocamentos, possibilitando a estes sujeitos que se movimentem, saiam do “monossentido fixado de seus significantes e abram-se à polissemia dos sentidos e da vida. 
Uma vez, um adolescente que frequentava um grupo que eu desenvolvia em uma comunidade em Florianópolis, bastante vulnerável e atravessada pelas violências (Estado, facções, tráfico, milícias...), diante de minha questão sobre o que desejava para o futuro,  respondeu: “aqui num tem querer, nosso destino é sempre o CC”. Intrigada com este significante, perguntei a ele o que queria dizer com isso. Ele me respondeu: “cadeia ou caixão”.  
Parece-me que a escuta, possibilita dar/devolver o estatuto de sujeito àqueles que são negados, desqualificados ou até mesmo mortos pelo laço social e esta é uma importante contribuição que nós psicanalistas podemos ofertar no trabalho junto às políticas públicas e comunidades. Trata-se de uma atuação que visa permitir que aqueles que foram fixados pela sociedade como “louco”, “delinquente”, “preguiçoso”, “fracassado”, “traficante”, “bandido” e tantos outros invólucros ideologicamente produzidos e formatadores de subjetividades possam ter um espaço para desconstrução ou reconstrução, ou o que conseguirem fazer com isto... que sejam escutados e que se dê lugar ao choro, à palavra e a novos deslizamentos na cadeia de significantes que permitam o sujeito vislumbrar outras possibilidades para além do “CC”, parafraseando aquele adolescente.  
Diferente do trabalho de assistentes sociais, não resolveremos o problema da pobreza; diferente do advogado, não diremos qual é a melhor decisão a ser tomada; diferente do juiz, não iremos avaliar ou julgar uma ação. Nossa atuação se difere das demais pois realizamos uma operação simbólica que, justamente por atuar a partir do não-saber, abre a possibilidade da emergência do sujeito, com seus paradoxos, sintomas e fantasma. 
Assim, tenho defendido entre muitos pares, que nós psicanalistas podemos construir dispositivos clínicos e políticos nas instituições, nas políticas públicas e  nas comunidades. A clínica não mais entendida como sinônimo de consultório, e a política completamente desvinculada da questão partidária. Um dispositivo significa algo que desencadeia a fala -  a clínica como uma forma de escutar e manejar aquilo que é possível ser escutado; e a política, como uma luta por uma sociedade menos excludente e opressora em relação a determinadas “diferenças”. 
Há muito ainda para ser pensado e trabalhado a partir disso, já que não se pode deixar de questionar e contemporaneizar a psicanálise. E que bom ver Instituições envolvidas com o estudo de um tema que atravessa diretamente questões tão amplas, ver psicanalistas comprometidos a seguir reinventando o que não pode ser estático.  


Referências Bibliográficas:

ALTOE, Sônia., LIMA, Marcia Mello.(2005). Psicanálise, clínica e instituição. Ambiciosos: RJ.

BROIDE, Jorge; BROIDE, Emília Estivalet. O atendimento em situações sociais críticas: a construção de um método baseado nas ancoragens do sujeito. In: A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Escuta, 2015.   

BUTLER, Judith. (2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 

CHAUI, Marilena de Souza (2016). Ideologia e educação. Educação e Pesquisa, vol. 42, n.1, p.245-257.

BRAH, Avtar. (2006). Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, 26, 329-376.

ELIA, Luciano (2011). Inconsciente e cidade. Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre: APPOA. 

FIGUEIREDO, Ana Cristina (2011). Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no cotidiano. Psicanálise e intervenções sociais. Porto Alegre: APPOA. 

ROSA, Miriam Debieux., VICENTIN, Maria Cristina. (2010). Os intratáveis: o eixo do adolescente do laço social pelas noções de periculosidade e irrecuperabilidade. Revista de Psicologia Política, vol. 10, n. 19, 1-18.

SUSIN, Luciane; POLI, Maria Cristina. O singular na assistência social: do usuário ao sujeito. In: CRUZ, L.R & GUARESCHI, N. (Orgs.), O psicólogo e as políticas públicas de assistência social. Petrópolis:Vozes, 2012.



quinta-feira, 17 de maio de 2018

Sobre o Narcisismo

Maurício Maliska apresenta o conceito de Narcisismo, pontuando questões importantes sobre este tema que inicia nosso estudo institucional.




Psicanálise, o que é isso?

Carlos Augusto Remor traz "o narcisismo das pequenas diferenças" ao pensar o que é a psicanálise e divide conosco seu entendimento sobre o tema a partir de Freud e Lacan. 


Psicanálise, o que é isso?
                        Carlos Augusto Remor[1]

            A invenção freudiana do inconsciente deu existência a Psicanálise. Seu nascimento representa uma quebra de todos os saberes da clínica médica, psiquiátrica e psicológica do século XIX.
            Além disso, representa também a mudança da visão medieval sobre as neuroses que surgiam sob a forma de epidemias e estavam na origem do que era considerado possessão e feitiçaria. Os histéricos tinham sido lançados à fogueira ou exorcizados e ainda hoje, não raro, estão sujeitos à maldição do ridículo.
            A transformação do método catártico[2]em psicanálise foi provocada pelo surgimento da teoria da repressão e da resistência, do reconhecimento da sexualidade e da interpretação de sonhos como fonte de conhecimento do inconsciente.
            O saber da psicanálise apareceu como o terceiro dos grandes golpes desferidos na reconfortante idéia que a humanidade tem de si mesma, forjada no amor-próprio, ou seja do seu narcisismo: com Copérnico, que a Terra não era o centro do Universo; com Darwin, de que não era mais a imagem e semelhança do Divino; e com Freud, que o homem não era mais dono e senhor dos seus próprios pensamentos.
            A psicanálise se atreveu ainda a questionar a sexualidade humana e chegou até à hipótese da sexualidade ser infantil. Questionou a opinião popular de que ela estaria ausente na infância e colocou em cheque o fato da existência da chamada doença mental.
            Vendo que as afirmações sobre a sexualidade não podem contar com o mesmo tratamento dado aos outros tipos de informações, o pai da psicanálise declara que passou a fazer parte do grupo dos que “perturbaram o sono do mundo”e que não poderia contar com objetividade e tolerânciapois seu golpe no narcisismo do humano fora grande demais.
            Em seu artigo “Psicopatologia da vida cotidiana”, Freud rompeu com a idéia de descontinuidade entre normalidade e psicopatologia, e instituiu a patologia como algo do homem comum. Tal idéia, já se encontrava no domínio público, expressa em ditos populares como: “de médico e de louco todo mundo tem um pouco”. A partir daí a consideração da sexualidade como normal e natural cai por terra. Temos, então, que há uma sensação de inadequação do sujeito com a sexualidade. Neste ponto, a troca das pulsões pelos mal traduzidos “instintos” tenta colocar a ideia da pretensa adequação sexual novamente em voga. Assim seríamos como os bichos, adequados ao sexo.
            Se Freud, pelas chamadas formações do inconsciente: sonhos, esquecimentos, atos-falhos, chistes e sintomas encontra o caminho para o inconsciente, através de sua objetivação pela linguagem, o psicanalista francês, Jacques Lacan o revive, enquanto os articula, por exemplo, na afirmação de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” e, como não poderia deixar de ser, pelo Narcisismo das Pequenas Diferenças. Contudo, no meu entender, este é um modo quase do chiste que faz Lacan, pois o Narcisismo das Pequenas Diferenças nada mais é do que o ‘Narcisismo das Igualdades disfarçadas’. Ele o chama de pequenas diferenças porque em seu estilo quase irônico, deixa entrever o que Freud já advertira sobre o caráter narcísico do amor, de que se ama o semelhante! É um dito bíblico: amai o seu semelhante como a si próprio!
            Lacan é conhecido por sua releitura radical da obra freudiana, não só a partir da linguística, mas também, da filosofia, antropologia, matemática, lógica e, com um caráter especial para a psicanálise, da topologia.
            Hoje há uma psicanálise chamada de Freudo-Lacaniana, exatamente porque foi Lacan quem soube ler Freud e lhe deu vida novamente, restituiu, o sentido da obra de Freud. Esta leitura, que faz o mestre francês, é tão rigorosa que deu lugar ao nome de um importante movimento internacional: “Convergência, Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana”, do qual fazem parte mais de 40 instituições psicanalíticas de diversos países, entre elas a Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.

           
[1]Dr. Carlos Augusto M. Remor é psicanalista, um dos fundadores e ex-presidente da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Aposentado como Professor Associado e ex-Chefe do Departamento de Psicologia da UFSC; Mestre em Letras e Doutor em Engenharia de Produção pela UFSC.
[1]Método de tratamento das neuroses, usado pelo Dr. Joseph Breuer, com auxílio da hipnose.
            

Convite ao envio de imagens



Neste percurso de perguntarmos como cada um tem pensado  “o narcisismo das pequenas diferenças”, temos ouvido sobre as diferenças em ato. E isto nos traz questões, reflexões e produção! 

Agradecemos a generosidade dos autores que dividem conosco sua escuta. Aos poucos, os textos, imagens e vídeos serão compartilhados por aqui para nos colocarem a trabalho!


"Balloon Girl"- Graffite de Bransky, premiado em 2002. 

Esta semana, até o dia 24/5, iniciaremos um trabalho de reunião de imagens que representam o tema. Convidamos participantes, adjuntos e membros para participarem conosco enviando para o e-mail jornadasmaieutica@gmail.com imagens que atendam à proposta “QUE IMAGEM REPRESENTA PARA VOCÊ O TEMA DAS JORNADAS ‘O NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS’?”
 Estamos animados com a possibilidade de neste momento, VER aparecerem singularidades que resultarão neste trabalho coletivo! Desejamos a participação de todos que se sentirem convocados!

quarta-feira, 2 de maio de 2018

A arte e as pequenas diferenças


Gabriel Bueno, Psicanalista, Professor de Psicologia da Faculdade CESUSC, Mestre em Psicologia Social e com experiência no campo das artes plásticas, cinema e arte urbana, discute o tema pensado num paralelo com a arte. 


Na imagem: o autor e sua obra - graffiti de Gabriel Bueno que assina sua arte como GBA.
Fotografia de Ana Carolina Von Hertwig



• NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS

narcisismo não se trata de uma doença da alma a fim de ser curada. Não é um sintoma ou patologia. Tal conceito é uma das condições que mantém a nossa existência, procurando protegê-la e armá-la contra fatores externos que ameaçam o eu: os outros e o mundo.

No entanto, a retirada do Eu para um gozo narcísico, abdicando dos investimentos nos objetos que lhe são externos, pode levar o sujeito às condições de delírio e de distanciamento de uma realidade possível de ser compartilhadasintomas estes característicos das neuroses narcísicas (Freud,1917). Se então o narcisismo se estabelece como necessidade de autopreservação e consolidação do Eu neurótico (Freud, 1914), ou se estrutura na ordem das psicoses, esse destino se dá na dosagem de libido investida no próprio Eu e no outro

Sabemos que as relações amorosas podem se configurar como um bom encontro, carregados de estima, carinho e bem querer; como também podem pender para a obsessão, para a dependência e para uma idealização delirante referente ao objeto escolhido como o suposto salvador da nossa condição de desamparo. Não seria diferente em relação a esse amor por si próprio.    

O narcisismo, mais uma faca de dois gumes da psicologia. Famoso tema dos livros de auto-ajuda: ama-te a ti mesmo! frequente auto-diagnóstico do aqueles que sofrem: baixa auto-estima. No entanto, a teoria psicanalítica evidencia a contradição desses saberes da cultura. O sujeito que se trancafia nas suas inibições, que sucumbe aos seus sintomas, que padece cotidianamente da angústia, por vezes pode ser interpretado como aquele que, justamente, não investe no outro, num objeto externo, mas preferivelmente em si mesmo. É sempre o foco de sua atenção, de sua preocupação, de seu próprio interesse. Consequentemente, projeta que o mundo lhe dá a mesma importância, o mesmo lugar de celebridade. Cola-se àquilo que representa o objeto de gozo, lugar esse tão angustiante ao sujeito, claustro de satisfação e de gozo do Outro. 

Há, todavia, um narcisismo mais “discreto”, cotidiano, comumente imperceptível nas nossas relações.  Aquele que Freud chamou de ‘narcisismo das pequenas diferenças’ (Freud, 1921, 1930), expressões estas que se apresentam nos nossos apegos a ideias, crenças, ideologias. O sujeito que se crê certo e irredutível nas suas convicções e que aponta no outro falhas intelectuais ou de caráter por esse outro não compactuar com as mesmas ilusões. Difícil aquele que escapa desses pensamentocorriqueiros em relação ao outro: “olha como ele se veste”, “que comportamento reprovável”, “que vergonha alheia”, “como pode ser tão estúpido”... Sim, nós todos cedemos à satisfação de crer que o nosso Eu é que sabe,que tem a resposta, que detém a verdade. 

Porém, enquanto permanece no plano da mesquinharia narcísica, nada de mais. No entanto, dada nossa inclinação ao ódio, à discriminação à agressão, é muitas vezes nas pequenas diferenças que reside o estopim para as práticas de violência e intolerância cotidiana (Freud, 1930)Nos tempos atuais parece que os preceitos dos livros de auto-ajuda triunfaramonde todos e qualquer um são oniscientes onipotentes, não deixando espaço para a dúvida e para a castração. Consequentemente, não permitindo espaço para o outro em benefício do Eu. 


• A ARTE E AS PEQUENAS DIFERENÇAS

Se a palavra funciona como um feitiço — que tem propriedade de atravessar o espaço, invisivelmente, chegar a um outro e provocar-lhe afecções no corpo e na alma — a arte se estrutura sob mesma característica, arte como magia (Freud, 1913)

Como feitiços, palavra e arte podem provocar sensações prazerosas, entusiastas, apaixonantes, aflorar em seus alvos os mais agradáveis afetosPodem também, entretanto, suscitar sentimentos desagradáveis, reviver memórias perturbadoras, evocar elementos sensíveis com os quais não se quer entrar em contato, que se tranca a sete chavesComo balas perdidas, muitas vezes os alvos não são premeditados os efeitos desses feitiços não podem ser previamente determinados.

Assim, a arte pode ser bem-vinda e representar a redenção de inúmeros infortúnios da humanidade, ou soar bastante desagradável se não coadunar com as nossas afinidades estéticas. Nossa recepção da obra de arte, como a avaliamos e como a sentimos, estaria mediada pelo Eu. Esse Eu imaginário estabelece suas identificações com elementos estéticos e a eles se alia com o propósito de delimitar o seu lugar no mundo, levantando suas bandeiras também no campo da arteMais um terreno fértil para as expressões das pequenas diferenças, onde narcisicamente se julga a partir de afinidades estéticas. 

É também contemporâneo — paralelo às intolerâncias políticas, religiosas e étnicas — a intolerância em relação às manifestações artísticas. Semelhante ao apedrejamento do nu de Michelangelo no século XVI (Lins, 2011), ou as exposições da arte degenerada no regime nazista, hoje, de forma sintomática, pois repetitiva, a arte é alvo dos ataques às pequenas diferençasdevido à impossibilidade de suportar pequenas desaprovações do Eu narcísico





REFERÊNCIAS:

(Freud, 1913) Totem e Tabu.
(Freud, 1914) Sobre o narcisismo.
(Freud,1917) Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (Parte III) – A Teoria da Libido e o Narcisismo.
(Freud, 1921) Psicologia de Grupo e Análise do Ego.
(Freud, 1930) Mal-estar na civilização.
(Lins, 2011) Nietzsche ou o elogio da beleza plástica .